Por: Leonel Matusse Jr.
Partidas de idas? De encruzilhadas? Ou as que resultam em estilhaços? Qual dessas, ou todas, ou nenhuma? Foram estas as perguntas que me surgiram assim que me caiu às mãos Ensaios da Partida, colectânea de poemas de Énia Lipanga, livro editado pela Gala-Gala Edições.


A professora Fátima Mendonça propõe que a Casa da Poesia Moçambicana começou a ser edificada por Rui de Noronha — a sapata e as vigas —, Noémia de Sousa seguiu com os trabalhos da obra — compactação e impermeabilização do solo —, e José Craveirinha concluiu com o processo da fundação — betonagem com armaduras metálicas ou betão armado —, tendo igualmente iniciado a estrutura — paredes e pilares, com blocos ou tijolos. Entretanto, essa infra-estrutura não cessa de ser construída. Ao longo do tempo, outros vieram dar continuidade à edificação. Se os primeiros autores tinham em vista o “eu colectivo”, com Luís Carlos Patraquim, sobretudo a partir de Monção, a poesia moçambicana começou a integrar também o “eu intimista”. Seguiram-se com êxito nesta linha autores como Eduardo White, que, por sua vez, formou discípulos — e o fio, até hoje, não se rompeu.


É na esteira desses últimos que encontramos, já em anos mais recentes, nomes como Andes Chivangue ou Mbate Pedro. E é nesta tradição que situo Ensaios da Partida. Trata-se de uma poesia que pensa o poema como palco do indivíduo, do seu Ser interior, dos seus dilemas existenciais. Como se dizia nas sessões do Movimento Literário Kuphaluxa, nas quais participei no outrora Centro Cultural Brasil-Moçambique (actual Instituto Guimarães Rosa), é a linha da “arte pela arte”.
A minha leitura assenta-se na contemplação das imagens evocativas dos poemas, construídas a partir de meditações sobre abismos da alma humana, tendo como ponto de partida e de chegada a própria poeta. Neles, Énia explora, em grande medida, a linha ténue que o amor entre dois entes — homem e mulher — pode ser: cura ou veneno, dependendo da dose, como canta Fioti em Gente Bonita. A pena da autora percorre esse território emocional, trazendo à superfície a generosidade desse sentimento, que parece ser a pedra angular do seu sujeito poético, sem deixar de tocar nas suas manifestações mais dolorosas — o abandono, a traição, a indiferença —, todas elas sacralizadas ao serviço do belo.


Lipanga fá-lo com uma estética distinta da que nos habituou. Énia projecta-se muitas vezes por meio de poemas performáticos, preparados para o palco, com dramatismo — evocando tradições da oralidade, bem como certos paralelos com o teatro grego —, o que a aproxima, em certo sentido, de Sylvia Plath. A diferença está no suporte: Plath escrevia para rádio; Lipanga escreve para a plateia. Mas neste livro, a poeta revela outra face, mais introspectiva e contemplativa, para além do espectáculo. É intimista ao ponto de a sua voz, por vezes, soar como um sussurro quase surdo, espelhando o seu estado de alma e, por extensão, evocando memórias e traumas no próprio leitor.


Por meio de versos curtos — esta convenção gráfica —, a autora parece dar razão a Ezra Pound, ao celebrar a palavra Dichtung (poesia, em alemão), por esta também significar “condensação”. Como se fosse possível condensar em poemas breves — como são os desta colectânea — imagens de todas as dores do mundo. Será que não é possível? Não sei.


Sobre esta acepção de Pound, o académico e psicanalista brasileiro Anchyses Jobim Lopes, no seu livro Estética e Poesia, argumenta que o poeta e crítico literário norte-americano — editor de T. S. Eliot, James Joyce, H.D., Ernest Hemingway e Robert Frost — encontra respaldo na psicanálise francesa, sobretudo em Laplanche e Pontalis. Para ambos, o conceito de “condensação” não deve ser confundido com “resumo”: se cada elemento manifesto — imagens, emoções — está determinado por muitos significados latentes, o inverso também é verdadeiro: cada um desses significados se manifesta em diferentes imagens. E, ainda assim, o elemento manifesto nunca exprime, de forma clara ou singular, todos os sentidos de onde deriva — como o faria um conceito. É nesta lógica que me parece residir a poesia enialipanguista: fragmentária, densa, feita de sentidos que reverberam na memória afectiva do leitor, como estilhaços de uma dor inevitável que nos atravessa ao longo das nossas efémeras existências — existência aqui tomada na sua acepção sartriana.


Essa dor está presente em metáforas, analogias, imagens que dilatam o tempo emocional do poema. Por exemplo, nas analogias: “A dor […]/ — é como se equiparada (isto digo eu) — […] à profundidade da cratera […]”, do poema Ópio (p. 24); “Fazes comigo / […] o que o sino faz aos devotos / num domingo qualquer […]”, do poema [Prodígios por auscultar] (p. 26). Ou nas metáforas do poema Cicatrizes (p. 28): “As frases são parcas / Para traçar a dor / As palavras não servem para cinzas / O peito e os olhos sangram / O sorriso é a lua / Como se pode morrer sem sentir? / Porque dói repetir golpes / Onde cesuras devolvem lágrimas”. E ainda em Descompasso (p. 30): “Sou / As notas deslocadas / Da guitarra enferrujada / Rasgo-me / Ao toque delicado / De quem busca alguma melodia / Sou / O sol pálido / A tentar queimar a neve / À espera de mais uma escuridão insone / O olhar fixo nos estilhaços do tempo / A multiplicar lágrimas / Sou / A pureza que regressa ao rosto da puta / Ao remover a maquilhagem / Para encarar o amanhecer / Enquanto somo os seres que sou / Tenho aprendido também / Quem sou”.
É, também, uma poeta de natureza. A escuta do mundo natural aparece discretamente: “O vento prossegue quieto” (Nos Becos, p. 16); “a sinfonia dos grilos” (Noite, p. 17); “Ceifas do ar o voo das aves” (Respiração, p. 17).
E há, por fim, uma sensualidade latente. Encontro neste livro a sedução da mulher que se sabe mulher, a ternura e a ira da fêmea ferida, a dor psicológica da vagina estuprada, a devoção pelo sol — que nela ganha contornos múltiplos: ora luz de esperança, ora refúgio contra a escuridão que se instala à força dentro do ser, ora sonho que revela a beleza das flores, das cores, das coisas. O sol é também testemunha cúmplice dos silêncios cobertos por risos abertos, do semblante que se faz belo no instante da pose para a fotografia.


Não sendo eu estruturalista, até porque sou apenas um leitor que, às vezes, recorre às ferramentas jornalísticas que este ofício me ensinou, não me alongarei sobre métrica, rima, estrutura ou convenções herdadas das línguas indo-europeias — esse território cabe aos especialistas.


E a esta altura, imagino que o leitor que chegou até aqui talvez se pergunte: e as respostas às perguntas do parágrafo que abre este texto? E eu respondo: também não sei. E acrescento: o que se parte, afinal? A poeta? O leitor? A linguagem? A alma?