É costumeiro artistas dizerem que a arte é um produto da alma, que é a mais elevada forma de expressão. Que é a maneira como se conectam ao mundo, que é o seu jeito de existir em meio as lutas do dia-a-dia. Alguns dão a vida, vivem pela arte. Outros, sangue, sangram pela arte. Contudo em momento nenhum ocorreu-me que este sangramento poderia ser literal.

O sábado foi tedioso. Passava a um passo que eu não sabia qual, por motivos que já descrevi. As conversas tinham se tornado redundantes. Aquilo era caçar o sono; cantar de memória algumas marrabentas; apreciar as pinturas rupestres que preenchiam as paredes em toda quase toda a sua extensão; reclamar do calor e falar vezes sem conta de coisas irrelevantes.

A hora do almoço aproveitei para perguntar ao Homem da pá, meu único companheiro e amigo de circunstância, quem era o chefe de cela?  Respondeu-me como quem já tivesse conhecimentos profundos a respeito do tema que: o chefe de cela era o mandachuva, o homem que comandava a cela, o mais forte de todos; a quem, dentro da cela todos deviam obediência, a vida, o almoço e a quem calhassem algumas moedas e cigarros era sua obrigação pagar tributo ao chefe. Recebi a mensagem com certo espanto. Nunca me teria passado pela cabeça que a figura a que o Bom agente no dia anterior teria se referido para tomar conta do agora ausente homem dos direitos humanos, seria aquela. Aproveitando-me ainda do facto de há instantes ter ajudado o meu amigo a matar a fome, tive com ele uma conversa franca e muito relevante:

– Aqui não há chefe, estamos na paz e estamos bem como estamos. Não queremos confusão. Caso alguém apareça e queira fazer confusão e ser o chefe, vamos coloca-lo a dormir lá no armário, do outro lado!

– Uhum. Concordou o meu amigo, sem muito a acrescentar.

Naquela tarde, recebemos um novo inquilino. Diferente de todos os outros que por ali passaram, aquele se assumia culpado.

– Aldrabei um madala*. O gajo pagou-me para fazer uns sofás e eu não entreguei. Mas ah vou sair daqui o meu irmão é do SERNIC. Era jovem, disse ter 36 anos, era forte e escuro não deveria ter mais de um metro e setenta e cinco de altura. De feições muito africanas, lábios grossos, a testa larga com o cabelo já em queda, o nariz abatatado, e os olhos negros pouco expressivos. Logo que deu entrada no local, tirou a camisa e descalçou as sapatilhas. Da meia, tirou um celular, daqueles pequenos (bombinha) e desde então começou num turbilhão de chamadas para toda a gente que o conhecia excepto para o pai. Contudo, para já, preciso apenas que memorizem a existência deste personagem. A sua grande relevância para a nossa odisseia será revelada nos capítulos a seguir.  Se calhar acrescentar apenas que estava a favor da nossa politica socialista da não existência do chefe de cela. Até porque se se opusesse seria ele o castigado, dada a desvantagem numérica. Mas, para já, passemos ao domingo.

O domingo, foi um dia muito movimentado no aposento, recebemos mais quatro inquilinos. Um apanhado a conduzir bêbado, dois apanhados a consumir marijuana na praia e o quarto porque não trazia consigo a carta de condução no momento em que a polícia parou o seu veículo. Este era um jornalista, um jovem muito conversador. Depois da entrada dele a cela ganhou um novo ânimo, conversávamos alto e sem parar. A dada altura um dos agentes do lado de fora irritado com as gargalhadas, agrediu a porta e deu um berro que dava para sentir que vinha das suas mais profundas entranhas, de quem tinha a mão a coçar pela infame pá:

– Estão felizes não é!? Aquela atitude nos rendeu mais algumas gargalhadas.

– Ah bro! essas cenas que vocês estão a contar algumas não são motivos para estarem aqui, disse o jornalista. Por exemplo eu, dei ao agente o número da minha carta para que ele a procurasse no sistema porque tenho uma carta, só não a trago comigo. Ele não aceitou. Disse que eu tinha de ter a carta ali comigo. Mas, até onde sei o crime é não ter a carta não é esquecê-la. Eu tenho uma carta, só não está comigo e para isso existe uma multa que se aplica. Mas sabes como são estes gajos, querem dinheiro, mas eu não vou dar. Já pedi a alguém para ir procurar a minha carta e trazer para cá. Depois de muito reclamar do cheiro e dos nossos artifícios para aliviar a bexiga. Voltou-se para as paredes e perguntou:

– Quanto tempo terão ficado as pessoas que fizeram estes desenhos?

– Não sei, respondi. Mas para terem feito tantos, deve ter sido muito tempo. Completei, preocupado. Começava a ficar claro que era possível ficar por ali mais tempo do que o esperado.

– Também quero fazer um desenho. Disse o Homem da pá, calmamente.

– Não deixes ficar a tua marca neste local, é como se quisesses para cá voltar, este é um lugar para esquecer! Respondeu o jornalista decisivamente

– Estou desde ontem a perguntar-me onde terão achado a tinta vermelha que está nalguns dos desenhos. Disse eu num tom de indagação.

– Realmente … 

– Só pode ser sangue! Completou o jornalista levantando a voz. Não vejo outra coisa, aqui não há tintas, se calhar alguém que tenha entrado ferido ou foi agredido. Aquilo só pode ser sangue!

E soltamos todos uma gargalhada que misturava; espanto, susto e amargura.

*velho

Stélvio Martins – Um humilde silencista