Esse é um facto que viria a constatar mais tarde. Naquele momento, estava demasiado ocupado a recuperar-me do som estridente que gritava na minha cabeça, depois daquela violência sofrida pelos meus ouvidos, que nunca, durante a minha curta existência, tinham experimentado sensação parecida.
No mesmo instante, um vulto passou diante de mim e agarrou-se às grades das aberturas por cima da porta, usando as barras que a dividiam em três quadrantes iguais como suporte para os pés — mais precisamente a do meio.
— Chefe, chefe! — gritou o vulto, que gradualmente tomava forma humana. — Estou a pedir para ligar, chefe! — implorou.
— Queres ligar para quem? — indagou o bom agente.
— Para a minha família, porque não sabem que estou aqui!
— Queres ligar para quê?
— É para tratarem do processo de me tirarem daqui — respondeu num tom complacente.
— Está bem, mas sê rápido, dita-me o número.
No mesmo instante, ouvi passos e, de seguida, outra voz:
— Esse é meu arguido!
— Diz que quer ligar — disse o bom agente.
— Tens três paus? — perguntou a segunda voz.
— Quero ligar, chefe, para pedir — disse com a voz meio cortada. Dava para sentir à distância a garganta a arranhar e as lágrimas que moravam lá perto.
— Está bem, mas não demores, tenho pouco crédito — finalizou o bom agente.
— Ninguém atende! — disse, desesperado, quase inaudivelmente.
— Epá, só podes tentar mais logo! — disse o bom agente, que, de seguida, afastou-se.
Parecia um monte de pedras, a maneira como desmoronou o jovem, que lentamente voltou ao seu canto, resignado. Ali, no chão, junto à parede, deitou-se, sem nunca dizer uma palavra. Ouvi apenas um suspiro longo e profundo que, por si só, já dizia muito.
Os mosquitos pareciam ser os únicos que apreciavam aquela situação. Cantavam serenatas alegremente, enquanto aproveitavam a diversidade do menu, que não tinha por onde fugir e cujo cansaço braçal já não permitia efectuar movimentos que pusessem em perigo a sua existência. A solução era deixá-los comer, quando muito, uma ou outra tentativa frustrada de mudança de posição — no espaço inexistente — como forma de demonstrar resistência.
E eu, deitado, a entreter-me com os pensamentos, ainda não conseguia perceber como tinha ido ali parar. Enquanto isso, o último jovem que deu entrada no nosso aposento colectivo dormia como um bebé depois da refeição. Era impressionante! Ter os direitos humanos acautelados devia ser bom, pensei.
Aquela comoção fez com que se iniciasse uma conversa e, como forma de quebrar o gelo — que, de qualquer modo, acabaria por derreter no calor sufocante daquela cela —, perguntei aos meus companheiros e futuros melhores amigos, de maneira tímida:
— Por que razão estão aqui?
E foram respondendo gradualmente:
— Dei chapadas a um puto que me provocou e calhou que estes gajos estavam por perto — respondeu uma voz junto à parede mais afastada, a que fazia a divisória do armário. — Mas amanhã saio, os meus cotas já sabem que estou aqui e, para além disso, somos mecânicos e todos estes polícias conhecem-nos, arranjamos os carros deles. Só me trouxeram para fazer ver, depois aquele chefe disse que queria três paus para eu sair, mas ah, eu não vou ficar aqui. Amanhã mesmo saio. Depois aquele puto vai pagar-me! — completou num tom de quem realmente tinha convicção no que dizia.
— Mini vani kumile na niya ntizewene, vani sectha, va kuma a poera dza mbagui, swa ma resto na swile packitini va gama va ni bwissa la, nem a engera a swa ntchumu. (Encontraram-me a caminho do trabalho, revistaram-me e encontraram resíduos de marijuana no bolso, por isso trouxeram-me para cá, coisinha de nada.) — respondeu a voz mais sofrida e calma que ouvi naquele local: era a voz do vulto.
— Não tenho telefone, não tenho o número da minha esposa e nem família que more cá. Lá em casa, ninguém sabe que estou preso. Moramos eu, a minha esposa e a minha filha de um mês. O único número que tenho é do moço que me arranjou o trabalho, mas até agora não sei se informou lá em casa que estou aqui. Dizem que querem 3000 meticais para que eu saia, mas com 1500 meticais poderia sair. Só que eu não tenho dinheiro — completou os detalhes da sua odisseia, num changana que exigiria de mim um nível de léxico e capacidade de redigir que não possuo para replicar, mas que, em resumo e em bom rigor, era esta a história do jovem, que mais tarde viria a descobrir que cumpria, naquele local, o seu terceiro dia de cárcere.
Era um verdadeiro sequestro, pois ninguém sabia da sua condição e os chefes não faziam questão de procurar a família do pequeno jovem infeliz.
— Mine ni yoba a vizinha hi fosholo! (Bati na minha vizinha com uma pá!) — disse calmamente outro jovem.
— Mas foi ela quem começou! Picou-me com um garfo no pescoço e rachou-me o lábio com uma colher de pau. Fui a casa lavar os ferimentos, que sangravam abundantemente, e a visão do meu sangue fez-me perder a calma. Achei que ela precisava de uma lição. Peguei numa pá, fui por cima da xpinhosa* e bati-lhe uma vez nas costas. Não quis fazê-lo com as mãos, pois tenho a certeza de que a mataria.
Disse-o com naturalidade, sem notar a minha cara de espanto. Bem, não sei a cara dos outros — a escuridão não me permitia vê-las —, mas tenho quase a certeza de que não eram muito distintas da minha.
— Por que é que ela não foi presa, sendo que também te agrediu? — perguntei.
— É que aquela menina namora um dos polícias desta esquadra. Então, como o namorado é polícia, ela abusa, acha-se intocável. Depois, não sei se ela avisou em casa que estou aqui. Ela é a única que sabe. Já estou aqui há dois dias.
Quando chegou a minha vez, tentei, da maneira mais resumida, contar o que parecia digno de um filme, sem nunca deixar de fora a minha clara indignação. Contudo, os detalhes da minha aventura serão partilhados com o leitor nos próximos capítulos, pois precisam de um capítulo inteiro para a devida compreensão.
A verdade é que, no final da conversa, chegámos à conclusão de que éramos todos inocentes. Estávamos todos presos injustamente. Aquilo era um ultraje e uma forma da polícia arrecadar dinheiro. O sentimento de solidariedade reinava entre nós. Naquela cela, éramos todos enteados da vida.
Indubitavelmente, naquele momento compreendi o velho ditado: “Na cadeia, todo o mundo é inocente.”
A diferença é que nós éramos inocentes… de verdade!
(Continua…)
Stélvio Martins – um humilde silencista