Na verdade, quatro. Não comia há dois dias. Não sei como são classificadas as habilidades naturais que o ser humano vai perdendo à medida que “evolui”, apesar de achar que, neste contexto, a palavra certa seria “regredir”. Porque, se Darwin escapasse do túmulo em ossadas (dado o seu ateísmo, não teria como descer dos céus ou ascender dos infernos), certamente teria um novo estudo a realizar, mesmo sem o benefício do cérebro.
Aquela manhã foi agitada. Eu, o rasta, racista, fui convidado a um muito brevíssimo banho gélido, que só não era mais gélido graças ao verão que tudo aquece, inclusive a tubagem da FIPAG, cheia de cicatrizes e arranhões, que corajosamente sangra em vários bairros (mas este é assunto para outras aventuras). Contudo, não pude deixar de me perguntar como seria enfrentar aquele banho no nosso inverno, às cinco da manhã.
O meu banho solteiro, sem direito a sabão nem escova de dentes, e as minhas viagens melancólicas foram interrompidos quando um berro violento irrompeu casa de banho adentro:
— Hei, rasta, seja rápido, não estás em casa!
Reconheci que aquela era a voz do todo-poderoso oficial de permanência. Sem querer dar mais motivos para aumentarem os meus dias, vi-me obrigado a interromper aquele que, curiosamente, viria a tornar-se o meu momento favorito ao longo daqueles dias. A casa de banho era, definitivamente, um lugar melhor que o aposento leproso onde me encontraria apinhado na maior parte do dia. Não era carregada de luxos e essas coisas, mas era, de certa forma, agradável. Seria por ser aquele o momento em que estabelecíamos uma conexão com a nossa essência vivente, a água? Seria porque aquele era o momento em que fazíamos a única coisa “normal” que nos igualava aos mais livres? Não sei. O facto é que apreciava aquela conversa íntima que tinha comigo mesmo naqueles momentos em que me encontrava vestido tal como vim ao mundo.
Após o banho, fomos todos alinhados junto à parede do lado de fora da cela, que ficava ao lado das casas de banho. Como numa montra, éramos exibidos ao oficial de permanência que faria o turno seguinte. Estávamos a ser contados e também era feita uma breve descrição dos nossos delitos.
— Esse bateu na vizinha; esse é nyaupeiro* e esse pensa que é superior à polícia porque namora uma branca — ia descrevendo o oficial, sem muito interesse no que dizia, para o colega.
Não levámos cinco minutos do lado de fora. Ataviado com as mesmas vestes do dia anterior, fui conduzido em fila até ao meu aposento real.
Aquela manhã foi bastante agitada, com alguns companheiros a abandonarem o local de cárcere. Primeiro, o jovem dos direitos humanos, que, antes mesmo do banho, teria sido convidado a retirar-se, sob pretexto de uma oferenda no valor de três mil meticais à casa magna que abrigava sua excelência. Tinha estado a dormir o tempo todo; certamente, sequer se lembraria de ter lá estado. Depois do banho, foi a vez do jovem mecânico, cujos familiares, beneficiando-se de um desconto por serviços prestados, terão pago uma quantia equivalente a dois mil meticais.
No final, sobramos três: eu, o jovem que era vítima da vizinha do garfo, e o sequestrado, cuja família ainda não tinha informação sobre a sua condição de encarcerado. Continuava a lutar com o único recurso à sua disposição — a voz — na esperança de conseguir sair dali. Passou quase toda a manhã pendurado na grade acima da porta, chamando todo e qualquer agente que se dignasse a passar rente à cela, pedindo chamadas e negociando preços. Escuso-me de dizer que o homem estava realmente empenhado em conseguir a tão almejada liberdade.
As horas que não sei quais eram passavam devagar ou rapidamente? Não teria como dizer. O traço dis-evolutivo que nos faz depender da tecnologia para ter essa informação não me permitia saber sem recorrer à mesma.
Ao longo da manhã, ficámos jogados em conversas banais. Quando não estávamos a ter uma conversa repetitiva sobre a nossa inocência e sobre o quão difícil era a situação do sequestrado, buscávamos, através das pequenas frestas da porta, saber o que se passava lá fora, como quem vê um reality show.
Num desses momentos, um dos meus companheiros — o homem da vizinha e do garfo, a quem doravante designaremos “Homem da Pá” — convidou-me a olhar pelas frestas da porta para um objecto que descansava junto a uma parede do outro lado do pátio.
— Estás a ver aquela pá? — disse ele, apontando.
— Sim. Estão em obras? — perguntei.
— Não, pá! É aquela pá que usam para bater nas pessoas. Mesmo ontem estavam a bater naquele gajo com ela — completou.
Não soube o que dizer ante aquela revelação, por conseguinte, reservei-me ao silêncio, tanto bucal como mental.
À medida que as horas foram passando, o desespero do sequestrado aumentava. Estava inquieto dentro da cela. Contudo, algumas horas depois, beneficiou-se de um milagre. Um dos agentes convidou-o a retirar-se da cela e, após uma breve conversa, foi-lhe restituída a liberdade, a custo de nada — o que não era muito comum. Se calhar, o oficial do dia era um homem religioso.
Horas mais tarde, a porta abriu-se, e fui convidado a retirar-me. O meu coração bateu contente, mas era tudo ilusão. Eram “apenas” amigos que vinham visitar-me, ou melhor, trazer a refeição, pois visitas não eram permitidas naquele local. Contudo, os detalhes desta parte serão mais elaborados doravante. Para já, interessa-me contar um episódio com o Homem da Pá.
Trouxe comigo a comida para dentro da cela e convidei-o para a refeição. Dei duas mordidas àquela sandes e deixei-a de lado. O apetite não era minha companhia naquele momento. O Homem da Pá trincava vigorosamente a sua sandes e, com a boca cheia, disse-me:
— Não como há dois dias.
Olhei para ele com cara de espanto e perguntei:
— Como assim?
— Desde que cheguei aqui, na quarta-feira, ainda não me deram comida! — completou, numa mistura de sons gustativos e palavras agridoces.
Já era sábado, por isso perguntei:
— Então estás aqui há quatro dias? — e contei com os dedos.
— Eh… então acho que entrei na quinta-feira. São três dias, não é? — rematou.
*Nyaupeiro – que consome Nyaúpe um cocktail de drogas muito popular