A vida é o espectáculo mais complexo de se compor. É um conceito abstracto que resume tudo. Até Deus só existe nela. E as sociedades, nas coreografias que vão moldando, fazem um movimento contínuo que, como assertivamente descreveu Bauman, é um escorrer líquido.
As necessidades de hoje estão – é senso comum – a várias léguas de distância das de ontem. A arte é fruto dessas mesmas dinâmicas. O artista é um ser social. É na comunidade que o envolve que observa o que devolve em artefacto (físico ou metafísico).
É interessante como esta arte, que nasce das culturas – a performance, o gesto, a crença de um conjunto –, seja igualmente capaz de criar outras culturas. O Hip Hop é prova disso.
Quem vos escreve chama-se Charles e vibrou ao ouvir o rapper Duas Caras a dedicar-lhe uma faixa na EP Tondje MC.
Não que tivesse desaprovado – se é que tenho tal autoridade! – o seu período Estaca Zero. Olho para esse percurso com dois registos: com Disso, Duas Caras mostrava que não quer caber em caixas. E, com isso, escreveu o seu nome no início de uma história cujos capítulos actuais revelam personagens como Hélio Beatz e Mr. Kuker, para apontar alguns exemplos que me são mais próximos.
Com a EP Tondje MC, em 2012, nesses rumos dos ventos, reconcilia-se com algumas vozes críticas ao seu movimento. Traídas, nalguns casos.
Nessa compilação, o rapper é um narrador de discurso eloquente, a usar a linguagem das streets para abordar as nossas vivências quotidianas e o status quo político – como já o tinha feito nos tempos áureos da GPro Fam. Encontramo-lo a traçar o perfil do quotidiano daquele momento com a sua pena, uma das mais literárias da cena.
Parte de nós entendeu Charles, com o coro bem entregue a Rui Machel, como o regresso do bom filho – o filho pródigo – a casa, na expectativa de que não mais sairia.
Na faixa Talhe da foice, encontramo-lo a representar, de forma eloquente, um leitor da coluna de uma crítica mordaz com o mesmo título do Machado da Graça, no semanário Savana, na mesma altura de Mal Cuado, de Luís Carlos Patraquim.
Da Graça era ácido, irónico, frontal e imaginativo nos seus artigos. Duas Caras encarnou-os e adaptou-os para igualmente analisar o Guebuzismo, marcando o Hip Hop como instrumento de emancipação social.
Com maestria singular, adaptou a crónica Jet 7, de Mia Couto, numa colaboração com outra lenda desses tempos, o intérprete, compositor e produtor N Star. Nessa track, o sujeito poético observa, com desdém, a sociedade do exibicionismo, consumismo e os outros ismos nocivos.
Seguindo esse fio, encontro o mesmo sujeito, anos mais tarde, em Não há mola, da EP Duditos Way. Este som projecta o “gajo” já a enfrentar dificuldades financeiras, a cortar despesas para gerir as contas.
Outra: apenas um retrato do quotidiano (?) Uma juventude desprogramada pela escassez do metical. O desenrasque para seguir a vida, não obstante. Com aquele toque de Kasszula no coro.
Nessa direcção, que cruza a crítica social e política com um vocabulário que mescla os calões corriqueiros do quotidiano, português e inglês, narra as vivências de quem se ressente de uma crise financeira. Bom, alguém dirá: “não confundam alhos com bugalhos”.
Além da literatura – com a crónica Jet 7 –, põe o Rap em diálogo com outra disciplina. Acompanhamos as faixas Frank Lucas, na colaboração para a mixtape Contra Cultura, de Valete, e Blue Magic, no derradeiro álbum da GPro, Foreva. Entramos no cinema. Ambas parecem sequelas do filme American Gangster, protagonizado pelo singular Denzel Washington e dirigido por Ridley Scott.
Segue com colaborações e singles, entre egotrip e temáticas abertas das streets, até chegarmos a Duditos Way, outra EP em que a sua pena se mostra consolidada. As imagens que projecta na track Vale do Rei são o retrato de um soberano no alto do seu castelo, “na torre a tchecar o horizonte”.
Põe um like, que igualmente integra o projecto, soa a uma sátira desta dependência – já patológica – da exposição nas redes sociais.
Sem o cliché de uma certa corrente dedicada a dizer de modo óbvio o óbvio, abre a cortina ao palco das aparências, mote de depressões. O beat é tratado com a leveza de uma escrita e um flow que parecem despretensiosos face ao que realmente atacam: a crítica.
Duditos Way contém ainda Vitz Amarelo, uma inversão à ostentação típica dos rappers, que, regra geral, exibem máquinas de alta cilindrada e tal. A nostalgia do percurso está em Ossos no baú, avaliado por uma leitura madura da caminhada, ao estilo My Way, de Sinatra.
Depois de Afromatic, que mostrava, mais uma vez, um Duas Caras alheio aos padrões da Cultura Hip Hop, anunciou a migração para o Afrobeat:
“Estou agora num novo lugar. Mentalmente, espiritualmente, emocionalmente, fisicamente e, acima de tudo, sou muito honesto comigo próprio e não tenho ilusões.”
Tem graça. André 3000, a lenda que mudou a direcção dos holofotes do Rap dos EUA para Atlanta, lançou New Blue, elaborado à base de instrumentos de sopro.
Fiquei a pensar um poucoxito só: Messi e CR7 abandonaram os palcos centrais. Lamine Yamal, Vini Jr., Gemy Caetano, Mbappé e Haaland disputam a posição… No Rap moz? Até tenho uma lista, mas…