Consta que, a 26 de Novembro de 1917, tropas alemãs invadiram as regiões das actuais províncias nortenhas de Niassa e Cabo Delgado, da então Província Ultramarina Portuguesa, no contexto da I Guerra Mundial.
Esse episódio é o mote do novo romance de Mia Couto, intitulado A Cegueira do Rio, a ser lançado, de acordo com a promessa do escritor numa entrevista ao suplemento cultural do semanário português Ípsilon, no próximo mês de Outubro.
O livro, cuja capa da edição moçambicana, a ser chancelada pela Fundação Fernando Leite Couto, foi publicada ontem nas suas páginas nas redes sociais, disse o autor, “foi suscitado por um episódio que aconteceu em Moçambique e de que se fala pouco”.
Tem uma relação, prossegue na entrevista, com a História de Portugal, com o início da Primeira Guerra Mundial no Norte de Moçambique, na região de Cabo Delgado e Niassa. “Revisito o ataque a uma pequena aldeia chamada Maziúa, um posto militar, que é praticamente o primeiro episódio da guerra no mundo inteiro.”
Portugal, situa Mia Couto, nessa altura ainda mantinha uma posição de neutralidade em relação aos grandes impérios da Alemanha e da Inglaterra, e a ideia da história é que era urgente apagar aquele incidente, apagar aquele posto, apagar aquela memória incendiada que estava ali.
O autor, que desde a trilogia As Areias do Imperador tem apostado mais em romances históricos, assume que, com este novo romance, sente ter entrado “em domínios em que nunca tinha entrado, particularmente naquilo que é o mergulho no imaginário de uma das ancestralidades moçambicanas, de maneira a ser o mais profundo, o mais antigo, o mais telúrico do imaginário moçambicano a conduzir-me à escrita, à poesia, à história”.
Ignorando se se tratava de apenas um narrador – ou dessa condição em si –, Mia diz ter-se imaginado naquele lugar, com os personagens a conversarem, enquanto a história se desenrolava.
“De maneira que a história é contada por cada um dos personagens, e o livro é feito, não em fragmentos, mas como se fosse o registo de uma conversa que conta a história”, disse o autor ao Ípsilon.
Sobre o processo de escrita, conta ter ido ao Niassa, onde se passa a história. Nessa ocasião, percebeu que a imposição do imaginário religioso se fez, sobretudo, pela imagem, considerando o facto de se tratar de uma sociedade ágrafa.
“Por exemplo, onde eu estive, em Niassa, a figura de Cristo tem seios, como se fosse mulher. Cristo não está crucificado em duas madeiras rectas, está num galho de uma árvore que se bifurca; não há ali uma construção feita para o crucificar, mas algo vivo”, conta.
Perguntei-lhes, prossegue, sobre os seios de Cristo, e a resposta foi unânime: “Para nós, que somos matrilineares, Deus é uma mulher, logo, Cristo surge assim.”
O que entra em choque com a sua visão do mundo, de tal modo que “isto, para mim, tinha um poder de invocação enorme, quase de transgressão do discurso patriarcal, desenhado como um Deus masculino, cheio de autoridade, que existe para julgar, que existe para punir”.
Naquela cultura, observa, não existe isso. Ou seja, não existe um fim, não existe um juízo final, tal como entende e difunde a cultura religiosa ocidental, seguidora deste ícone cristão.
Este facto em particular, comenta o escritor, torna impossível não escrever inspirado nesse outro tipo de cosmologia, e não se faz isso só para dizer aos europeus, mas em função da verdade que tinha de ter com essa outra sensibilidade.
Igualmente, durante a pesquisa e redacção do romance, recorreu a arquivos antigos de 1913-14 para ver como se faziam as cerimónias religiosas e as cerimónias de iniciação das raparigas e dos rapazes, como é que se escrevia com farinha sobre a terra, como é que se desenhava — “e tenho imagens desses desenhos, que são uma espécie de outra caligrafia, para que essa ideia arrogante de que só existe um alfabeto, que só existe uma escrita, seja questionada no meu livro”.