A tragicomédia de um “preto” que virou homofóbico*

Deixei um grupo de amigos na agradável tasca do Flávio, ali na esquina do mercado Estrela Vermelha, por volta das 22h, na sexta-feira. Depois dos 30 anos, qualquer programa entre amigos que tenha mais de 5 horas é entediante, mesmo quando há álcool à mistura.

Em direcção à avenida Eduardo Mondlane, um homem juntou-se subtilmente ao meu passo e meteu conversa. O gancho para o início da conversa foi até engraçado:  o homem alertava-me para os perigos de atravessar o coração do Mercado Estrela depois das 21h e eu, na gargalhada, respondi que eu nasci em Hulene – não há comparação possível.   

Mas continuamos a conversar ao ritmo de um passo cada vez mais lento, até que ele admitiu que tinha a intenção de “levar-me à cama”. Fiquei fascinado com sua frontalidade, principalmente por saber que qualquer outro jovem hétero da minha capital teria optado por deixar-lhe, imediatamente, com um hematoma na cara depois de tamanho “atrevimento”.

Devo admitir que tive, primeiro, dúvidas sobre a posição que ele queria que eu ocupasse na eventual relação, mas não o questionei. Decidi continuar a escutá-lo esgrimir os seus argumentos, num compasso cada vez mais lento.

Senti-me, por um momento, a “caça” na mira de um predador, que, quase já sem fôlego, insistia em convencer-me que a sua cama era o melhor lugar para se estar naquela noite de sexta-feira. Continuei a escutar os seus argumentos e, embora com algum nível de desconforto, eu queria saber quem era este homem que me queria “levar à cama”, um convite que nunca me foi directamente feito pelas meninas dentro destas três décadas que ando nas ruas da minha capital.

Notei que, apesar da sua frontalidade, ele esperava, de mim, uma reacção dura, tanto que me questionou, depois de explicar que eu era hétero, porquê que não me revoltei com o convite, como normalmente ocorre nos seus dias normais de “caça” em Maputo.   

Não me revoltei com o convite de um homem que me queria “levar à cama” simplesmente porque estou consciente sobre a minha orientação sexual, expliquei-lhe, argumentando que, em minha opinião, uma reacção violenta da minha parte face a abordagem denunciaria, no mínimo, a existência de dúvidas sobre a minha própria masculinidade, como ocorre com vários amigos meus.

É verdade que a homofobia está instalada na estrutura das nossas sociedades, até entre os que se consideram “tolerantes” e que, de peito erguido, afirmam que não são homofóbicos porque têm “um amigo “gay”, sem observar o implícito preconceito que há neste tipo de comentários.

Os argumentos para justificar o ódio contra os homossexuais são vários, mas os fundamentos religiosos são os mais severos: a relação entre duas pessoas do mesmo sexo é um “pecado abominável”, embora se assobie para o lado face a pedofilia na igreja Católica ou a promiscuidade de pastores nas congregações que reivindicam a adoração ao “Deus vivo” (as pentecostais).

Como negros, vítimas de um sistema brutal de segregação racial que até hoje nos assombra, devíamos ser os primeiros a rejeitar qualquer argumento preconceituoso para com uma minoria, independentemente das nossas convicções políticas, religiosas ou até mesmo culturais.

Ontem fomos também uma “minoria”, oprimida por um sistema que não aceitou diferenças. Hoje, replicamos os mesmos vícios fundados num sistema institucionalmente homofóbico, definindo até uma base legal para punir estes “comportamentos desviantes”, alegadamente porque não encontram espaço nas nossas culturas africanas.

A culpa é sempre atribuída ao ocidente, que supostamente nos quer impor condutas contrárias às nossas culturas. A arrogância do ocidente é um facto. Há sim, na raiz da alegada “globalização”, a imposição da cultura ocidental sobre as outras, com graves consequências para uma juventude exposta às tecnologias e de hábitos e costumes híbridos.

Obviamente, o debate sobre as minorias em África não deve passar para os holofotes porque o acidente assim o impôs no âmbito do novo modelo neocolonial onde manda quem tem capital. O debate sobre os homossexuais em África deve ser imposto pelos africanos, que têm a experiência, com cicatrizes ainda abertas, sobre as consequências do preconceito contra qualquer tipo de minorias. 

O homossexualismo, em si, não é o resultado de influências ocidentais. Há cada vez mais evidências que provam que antes mesmo da formação da civilização greco-romanas, a “base” do mundo ocidental como conhecemos, no Egipto Antigo, no continente africano, havia minorias sexuais, embora seja importante admitir que a compreensão moderna da sexualidade não se aplica aos períodos históricos.

No bar, em casa ou no trabalho, a partir de um comentário “inocente”, continuamos a desenvolver um estigma contra as minorias sexuais, que leva milhares de moçambicanos a esconderem a sua orientação sexual.

Esquecemo-nos, como negros, que um dia fomos minoria e o “opressor” também teve argumentos para justificar a nossa condição de escravos, incluindo fundamentos religiosos. Por um lado, é preciso admitir que o racismo e a homofobia têm pesos diferentes nas nossas sociedades, devido, talvez, a factores históricos.

Mas é necessário travar agora o argumento falacioso que defende que este tema não é uma prioridade nas sociedades africanas. Há milhares de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais escondidos por de trás das máscaras da conveniência nos nossos ministérios, na nossa polícia, nas nossas empresas, nos nossos bairros e nas nossas famílias. Como todos nós, estas pessoas merecem ser protegidas, na medida em que cada um de nós tem o direito de viver como a sua consciência determina.

Em Moçambique, a associação de defesa de minorias sexuais (Lambda) continua numa batalha jurídica para ser reconhecida legalmente pelo Governo, que se remeteu ao silêncio, embora ciente da inconstitucionalidade desta falta de resposta. Provavelmente, mais cinco, 10 ou 20 anos se vão passar sem respostas. Como tantos outros assuntos, falta-nos coragem para abordar verticalmente um tema que existe e que eventualmente teremos de aceitá-lo, passe o tempo que passar.

A conversa com o meu novo amigo terminou mesmo na avenida Eduardo Mondlane. Embora visivelmente insatisfeito com a minha resposta face ao seu convite, trocámos contactos e ficamos amigos. Desejei-lhe a continuação de uma boa “caçada” e, já sorrindo, agradeceu-me e seguiu o seu caminho.

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