Ponte Cais*

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No cais onde Ricardo Rangel aprofundou a ideia de liberdade, recebendo vinis de jazz, que na verdade retornavam ao seu porto de partida (claramente, uma metáfora), o poeta Mário Forjaz Seca pousou o olhar, apontou a retina da sua câmara e registrou o eterno que são estas imagens que compõem esta mostra. Entre as quais a do pescador a puxar a rede com o peixe que comemos enquanto lemos as notícias no Facebook e algures onde navegam e cantam as ondas da internet.

O mar é o mistério absoluto. É a residência de todo o tipo de fantasia, da hilária a mais sensata desde a “Odisseia” de Homero até “A triste história de Barcolino” de Lucilio Manjate. Guardemos esta palavra: mar.

Com o espírito a transbordar de sensível, que caracteriza a existência do poeta, Mário Forjaz Seca transportando a câmara ao colo ou o Iphone a mão, atento, consciente do poder da imagem, mas sem pretensões tais (ele fotografa desde a adolescência, mas só recentemente nos dá a ver em exposições), obediente ao impulso de ser, ele testemunha e eterniza as marcas da cidade de Maputo que nos vão escapando a nós, ordinários viventes. Deste modo dá vida a esta frase de Nietzsche “o artista examina minuciosa e cuidadosamente os sonhos, porque sabe descobrir (…) a verdadeira interpretação da vida”, que lê-se algures na “Origem da tragédia”. É certo que, respeitando o contexto, como se sabe hoje, alguns séculos depois, é a realidade bruta, nua e crua sem o cantar das gaivotas nem o encanto das sereias que o artista usa para nos apaixonar e revelar o verdadeiro retrato.

Através da fotografia, o poeta materializa outra forma de projectar imagens. Igualmente em fragmentos, é um facto. E neste exercicio, a mim recorda, Nietzche na introdução da “Origem da tragédia” se debruçando sobre a embriaguez causada pelo belo, simultaneamente, que me leva de volta a zona turva e questionável em que coloca Dionísio – que ironia! – Bahule o fotógrafo.

Pode ser que estas imagens retratem, literalmente, a dureza e aspereza da vida de quem madruga com isca que arrisca na tentativa da salvação que toma a existência deste peixe que acaba frito como uns e outros. É, parece claro, um defeito de fabrico da arte, tornar belo o caos a gerar vozes num click, que tanto gritam como os pescadores e marinheiros da travessia Inhambane-Maxixe que canta o Jaco Maria. Mas são outros, os de Maputo (?) e do mundo que tem o dom de proprietários de todo o fantástico que Forjaz nos traz sem nunca os desembarcar destes registros, eternizados hoje, nesta gama fotográfica. Aliás, de memória. Mar, não percas esta palavra de vista.

*Texto de apresentação da exposição Porto de Pesca de Mário Forjaz, inaugurada ontem e patente até ao dia 31 do mês corrente

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É licenciado em Jornalismo, pela ESJ. Tem interesse de pesquisa no campo das artes, identidade e cultura, tendo já publicado no país e em Portugal os artigos “Ingredientes do cocktail de uma revolução estética” e “José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem”. É membro da plataforma Mbenga Artes e Reflexões, desde 2014, foi jornalista na página cultural do Jornal Notícias (2016-2020) e um dos apresentadores do programa Conversas ao Meio Dia, docente de Jornalismo. Durante a formação foi monitor do Msc Isaías Fuel nas cadeiras de Jornalismo Especializado e Teorias da Comunicação. Na adolescência fez rádio, tendo sido apresentador do programa Mundo Sem Segredos, no Emissor Provincial da Rádio Moçambique de Inhambane. Fez um estágio na secção de cultura da RTP em Lisboa sob coordenação de Teresa Nicolau. Além de matérias jornalísticas, tem assinado crónicas, crítica literária, alguma dispersa de cinema e música. Escreve contos. Foi Gestor de Comunicação da Fundação Fernando Leite Couto. E actualmente, é Gestor Cultural do Centro Cultural Moçambicano-Alemão

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