Um homem que sorri é capaz de tudo

ao meu amigo Dany Wambire  – palavras escritas em 2020 

Em cada esquina um amigo dizia o Zeca, no entanto, a poesia tem o condão dos enigmas, transcende o óbvio, há que ter lupa no lugar dos poros. Eu cá para mim a esquina em que a amizade me espera pode estar a quilômetros de distância ou ainda mais perto do que se possa imaginar. O certo é que há um amigo que me custou uma aventura e um acto de rebeldia inesquecíveis e é sobre esse ser de luz que dedico estas divagações.

Foi em 2017 que, tomado por um profundo entusiasmo artístico e inquietante revolta contra o estado insípido das coisas, resolvi contrariar a monotonia que regia o movimento teatral em Moçambique. Aborrecido (e hoje mais do que nunca) com as fronteiras invisíveis que impedem a mobilidade e o encontro entre os artistas dos diferentes distritos, vilas, cidades e províncias entre si e com outros públicos, convenci a minha companhia de teatro (o Katchoro) a enfrentar a tortuosa e muitas vezes trágica estrada nacional com destino aos palcos da cidade da Beira.

Iríamos nos apresentar no Novo Cine à convite do Apingar Gárcia, actor e responsável pelo Teatro Municipal e director da companhia de teatro Chamuarianga. Há uma semana do evento já podia se ler nas paredes gordurosas do Comilão e nos postes de electricidade que serpenteiam o mercado do Maquinino o seguinte, em cartazes originalmente improvisados:  O grupo de teatro Katchoro, directamente de Maputo| apresenta o espectáculo “O casal Palavrakis”| texto de Angélica Liddell| adaptação e encenação de Venâncio Calisto|e interpretação de Assucena Daniel e Sidónio Mondlane.

Como todas grandes decisões, a nossa ida à Beira, dependia doutros factores para além do entusiasmo e da revolta de um jovem encenador. Para concretização da nossa empreitada, eu e os meus companheiros de cena tivemos de enfrentar crocodilos e hienas. Do ministério da cultura recebemos um sonoro NÃO a confirmar o desolador mikulugwana que domina o palco da nossa cultura. E antes que a derradeira gota de desesperança engordasse ainda mais o nosso desespero, o escritor Mia Couto vestido de arcanjo providenciou-se, em nome da Fundação Fernando Leite Couto, a comprar-nos as passagens de autocarro para a terra do Xiveve. Mas a aflição não cessou, abalava-nos continuamente a questão: como iríamos desencantar um lugar para dormir?

E foi precisamente nessa encruzilhada em que encontrei o meu amigo Dany Wambire. Sem o saber, o Dany esperava por mim no mais íntimo das minhas inquietações. Perto de atravessarmos o rio Save liguei-lhe e contei-lhe o imbróglio e para a surpresa de todos e minha perpétua gratidão o Dany se prontificou a hospedar-nos em sua casa. Chegamos à cidade logo depois do cair da noite e lá estava o Dany a acenar-nos com o seu sorriso, fluorescente candeeiro da fraternidade germinado no chão ensopado da Beira.

Ainda existem homens bons neste purgatório. Passei, desde então, a dizer para os meus botões, ciente de que chegaria o dia em, finalmente, poderia cantar a minha felicidade para o mundo. durante a nossa estadia na Beira, o Dany foi o alento mais reconfortante e o farol necessário. Passávamos a noite em animadas e inenarráveis tertúlias filosóficas. Desconfio que tenha sido dessas alucinadas interpelações que nasceu a linha mágica que juntou as nossas missangas e pariu o colar mais precioso que um homem pode ter, a amizade. O Dany Wambire, para mim, deixou de ser o sorridente escritor lá da Beira e passou a ser o meu companheiro eleito pelos deuses, um confidente e um parceiro de projectos.

Um ano mais tarde, depois de deixarmos o Parque Nacional da Gorongoza, onde estivemos a orientar uma oficina de escrita criativa e teatro para um grupo de raparigas das aldeias vizinhas, o Dany voltou a acolher-me em sua casa. Passei lá a noite e no dia seguinte regressei à Maputo.

Foi nessa minha curta passagem pela casa do Dany que presenciei a mais fascinante magia da bondade. A madrugada imperava quando eu e o meu amigo nos pusemos a dançar a dança dos sapos, à procura de abrir caminho por entre as infinitas possas da noite beirense. O Dany acompanhava-me à rodoviária. Quando de repente uma matilha nos deteve. O sonoro e cortante latido dos cães e a sua feroz investida contra nós foram a dose perfeita para que o pânico se instalasse. Lembro-me de ter ficado paralisado por instantes, sem saber o que fazer, quando o meu amigo, com a tranquilidade que lhe é característica, sussurrou-me.

– Mano Gui, tive uma ideia.

– Mano Dany, não é hora para filosofias, os cães já estão a lamber-nos.

– Eu defendo uma filosofia prática, tu sabes disso.

– Então, diz logo a tua ideia filosoficamente prática que eu já estou a sentir o naco da minha nádega na boca desses madjolidjos peludos.

–  Vou apenas sorrir.

Antes que lhe atirasse com o calhau da minha aflita indignação, uma luz misteriosa atravessou o sombrio corpo da madrugada e qual um personagem das fábulas encantadas dissipou a iminente tragédia. Quando dei por mim, os cães que há pouco quase nos comiam vivos, estavam serenos, agarrados às nossas pernas, como bebés sobre o peito da plenitude. O que é que terá acontecido? O meu amigo seria detentor de um poder sobrenatural? Debati-me durante muito tempo até que compreendi: quando um homem é capaz de sorrir é capaz de tudo.

Venâncio Calisto

Lisboa, 09 de setembro de 2020

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