Por Celso Muianga (30 de Outubro 2019)
Para além de ti
no perfil duplo da tua cabeça
quero que cante um pássaro até romper a manhã.
Fernando Leite Couto,
in POEMAS JUNTO À FRONTEIRA, 1959
Ao
Mestre Calane da Silva!
Quando fui convidado para apresentar a mensagem de homenagem ao escritor, poeta, jornalista, declamador, professor universitário, Mestre e amigo Raul Alves Calane da Silva recebi a tarefa num misto inexplicável de emoções, mas sobretudo com sentido de elevação e responsabilidade acrescida. E espero dizer algo que te faça justiça, Mestre.
Vou começar por felicitar-te por celebrares neste ano 50 anos de uma carreira literária, marcada pelo visível empenho de um jornalista preocupado com as questões do seu tempo, um poeta e escritor marcado pela vida, um professor, um mentor de várias gerações de autores, de novos professores e leitores, mas sobretudo, de polivalência inexcedível em várias áreas do saber.
A obra de Calane da Silva não pode passar ao lado de nenhum de nós e urge a sua contínua divulgação por forma a alcançar muitos mais leitores desta varanda à beira do Índico. Tio Dinasse assim era chamado por muitas gerações de colegas o meu saudoso professor do secundário Pascoal Chaimite que provavelmente Calane não conheceu.
Quando a obra transcende o autor há uma verdadeira alegria que a fortuna literária pode proporcionar a quem a escreveu. O Professor Pascoal era um leitor voraz e admirava XICANDARINHA NA LENHA MUNDO de tal modo que, ao falar do texto, tremia de emoção como se fosse ele o legítimo autor daquela obra. Esta emoção que ele espalhava na aula, ensinando os seus alunos a gostar de ler. E eu faço parte dessa lista dos que aprenderam com o Professor Pascoal. Creio que houve no país outros professores como Pascoal Chaimite que ensinaram muitos outros alunos seus a gostar de ler, de norte a sul do país. Isto aconteceu porque fragmentos do livro XICANDARINHA… faziam parte do plano curricular do ensino secundário-geral. Nos últimos anos isso não acontece, infelizmente. E fazendo piada nas redes socias, alguém perguntava há meses sobre a obra do escritor Mia Couto. E a resposta dizia que se não sabia onde ele estava a construir.
Convoco o escritor russo Anton Tchekov que escreveu ao amigo Máximo Gorki sobre os professores do ensino primário e a meu ver, sobre todos os professores: «Quando me encontro diante de um professor primário, constrange-me vê-lo tão tímido, tão mal vestido, e tenho a impressão de me caber também a responsabilidade no seu infortúnio…»
Mestre Calane da Silva,
a cidade que te viu nascer há 74 anos decidiu por via do pelouro da cultura prestar-te uma tão merecida, quanto justa homenagem. O património da cidade são as pessoas que a habitam. E os artistas e escritores são os mensageiros, vertem a alma nas suas obras. Vou recordar um excerto de uma poema de Rui Knopfli que me parece oportuno:
Amo-te cidade da infância
com girassóis e casas de madeira e zinco
a dormir na neblina da memória.
Numa entrevista ao escritor Nelson Saúte, o escritor português Baptista Bastos, o cronista da CIDADE DIÁRIA dentre vários outros títulos, afirmou:
«A literatura não é importante, é indispensável. Não há desenvolvimento sem literatura, sem poesia, sem prosa, sem pintura, sem cinema, sem teatro, porque pobre dos povos – eu penso que não há nenhum- que não converse, a literatura é sempre uma conversa com o outro».
Devo dizer que dos convites que em tempos formulei, enquanto activista cultural, ao mestre Calane, para dar uma palestra em Boane, ou Matola, ou numa e outra escola da periferia de Maputo não me lembro de uma recusa, talvez, e foram poucas vezes, num e noutro caso tenha proposto uma mudança de calendário. É esta a forma de estar de Calane da Silva, uma pessoa sempre disponível para estar com os outros, para partilhar a sua sabedoria. E a geração de novos autores tem o seu dedo. Por exemplo os grupos literários dispersos pela cidade, tais como Kuphaluxa, Café com Livro, em sessões de formação, lançamentos e conversas no Instituto Camões e na Fundação Fernando Leite Couto, sem esquecer-me das primeiras edições da feira do livro, todos tiveram o seu apoio.
Noutro dia passei uma tarde a reler uma edição da revista Tempo dos anos 80, uma grande reportagem sobre a peça «Gota de Água» apresentada no Centro Cultural Tchova Xita Duma. Contam Calane e outros actores daquela peça que foram semanas e semanas de ensaios, fora de horas porque quase todos trabalhavam, e faziam teatro por paixão e prazer, algo que precisamos de transmitir aos mais novos.
Calane da Silva é membro fundador de diversas organizações, como: Associação dos Escritores Moçambicanos, Organização Nacional de Jornalistas, Associação Moçambicana de Língua Portuguesa,apoia o departamento de oncologia do Hospital Central de Maputo, foi presidente do Instituto de Língua Portuguesa e, nesta semana recebemos a boa nova, da comemoração do dia da Língua Portuguesa, a 5 de Maio pela UNESCO, foi o primeiro director moçambicano do Centro Cultural Brasil Moçambique, Presidente da Mesa da Associação Cultural Kulungwana, Membro do Comissão de Honra da Fundação Fernando Leite Couto e de outras instituições que aqui não irei mencionar.
A 20 de Outubro de 2005 Calane da Silva fez 60 anos. Um grupo de amigos e admiradores foi a casa do mestre para celebrar o seu aniversário. De entre várias peripécias recordo que ele disse «comi na palhota e no palácio». Fez a ponte entre estas duas realidades mas não perdeu os valores que aprendeu com a sua avó ronga, sua mãe em Mikhokwêni, na Malanga e com outras pessoas que cruzaram o seu caminho. Tudo para dizer que o Mestre Raul Alves Calane da Silva é uma pessoa verdadeira admirável, um autêntico agitador do sol.
Poderia passar a tarde inteira a tentar justificar o injustificável, o que me parece óbvio e flagrante, a sua dedicação de activista da vida.
Vou usar a bengala do crítico literário brasileiro António Cândido que nos revela que «o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos à natureza, à sociedade e ao semelhante».
No livro XINGONDO do meu amigo Daniel da Costa, numa das crónicas, um menino pergunta ao pai quem este senhor apontando para a estátua de Eduardo Mondlane na avenida do mesmo nome. Esta alusão ao texto do Daniel da Costa reenvia-me para a pergunta e para o vazio recorrente quando, em muitos casos alunos, são questionados sobre uma data ou personalidade nacionais. Cabem nessa lista de personalidades representativas e relevantes de Moçambique que, com o tempo podem perpetuar-se nesta cidade, nomeando lugares, o escritor, jornalista, professor universitário, poeta, declamador, actor Raul Alves Calane da Silva. E espero que muitos rapazes e raparigas saibam de futuro responder com conhecimento a uma questão semelhante.
Calane da Silva é por assim dizer a nossa Xicandarinha, essa chaleira de que muitas famílias moçambicanas e do mundo se servem para aquecer a alma.
Bem haja, Mestre Raul Alves Calane da Silva, votos de uma vida de luz, multiplicando-se por todos e por cada um.
Celso Muianga
Maputo, 26 de Outubro de 2019
*Mensagem lida no acto de homenagem ao escritor na Feira do Livro de Maputo.