Smart Kika Maybe

Aquilo não passava das 19 e um quarto, de certeza. O cobrador atira a palma à chaparia do autocarro com tais Newtons que parece mentira o a vontade com que se dedica a tal acto que soa em todo o machimbombo. Na esquina da avenida, imponente, o Smart Kika amarelo simula o arranque. Jardim, Benfica, Zimpeto.

Sapatilhas Adidas brancas, calças jeans pretas, camiseta lisa a combinar com o piso. O rapaz entra para o autocarro a segurar a sua mochila azul escuro, Nike.

O amarelinho ainda recolhe. Sorte. O motorista relaxa o motor da arca, equivalente a proeza de Noé em termos de comodidade, mas desta vez sem a aura de peregrino do divino. Os passageiros pacientam. De uma descida ingrime exposta na janela lateral à minha frente, a sirene impõe silêncio. Todos olham de soslaio para a viatura que passa.

– Cobrador, queremos voltar para casa, arranca. Não queremos problemas com a polícia.

O Smart Kika que afinal de contas é o autocarro, enfim arranca.

-Acelera, queremos chegar antes…

De dar dó um branco imaculado, cândido naquele esfrega-esfrega e txova-txova no estreito corredor abarrotado nas laterais junto aos acentos. O moço procura por onde se acomodar.

– Entrem mais – ordena Maybe, um cobrador famoso na rota por nunca ter um metical de troco. Habitualmente, quando os passageiros reclamam o dinheiro em falta, a resposta é “maybe amanhã, quando me apanhares posso te dar”. No dia do prometido, no casual reencontro: ele – maybe estás a me confundir, não me lembro de ti. Maybe estás certo…, mas que tal se estiveres errado, Boss? maybe.

Pendurados onde dá, a travagem brusca me esclarece que o assento sob o qual apoio os braços é móvel, libertou-se com a moça que estava sentada com uma criança no colo.

Na curva da Junta, a tentar meter o Iphone na mochila, posta a frente, na Avenida, da janela vê-se um Coaster Z. Verde – A. Voador. O cobrador ajusta passageiros que estão com apenas metade do corpo no interior da viatura, porque não há mais por onde se encaixar. O Coaster está a ultrapassar, e os equilibristas não se ajustam antes de perdê-los de vista. O Coaster bazou.

Um Txopela surge no para-brisa, um Toyota Platz creme, uma VW Golf 2005 azul, fazem fila, na lateral direita, um minibus branco, de vidros fumados, é seguido por um Peugeot 407 cinzento já consumido pelo sol. Seguem dois engravatados.

– Dá licença, vou descer agora. Paragem cobrador, estou para descer. Paragem. Haaa, cobrador, nem parece que ouviste.

– Haaa, agora que estamos a passar é que estás a falar. Haaa, essa nota é alta, não tenho trocos. É para eu fazer o quê? Haaa, arreia. Haaa, ainda há espaço. Me deixem trabalhar, passageiros, estou a pedir para afastar, aí atrás, deixam-lá passagem, aí no corredor, no meio…

LADRÃO, LADRÃO, LADRÃO – grita de raiva, num contrassenso com os cabelos cacheados e a saia cinzenta de racha nada discreta – a tal deixa sofrer o rapaz -, blusa branca com detalhes amarelos no bolso e na gola, além do cachecol da mesma cor no pescoço. Seu tom de pele claro avermelha-se, por baixo dos óculos escorrem lágrimas. LADRÃO, LADRÃO, LADRÃO, LADRÃO. Flagrado, ao seu lado, o moço da camiseta imaculada, por caridade, devolve o smartphone, no pesado clima de silêncio abrupto ante aquele desespero da jovem.

De sapatilhas Adidas de um branco divino, camiseta Gringo da mesma cor, calças jeans pretas e mochila preta da Nike, o flagrado desce na paragem seguinte, num passo tranquilo e sereno dos justos.

 – A vida daquele moço é assim. Eu já lhe vi noutro chapa a fazer a mesma coisa. É todos dias essa rotina, eu já lhe conheço. Não é a primeira vez. Maybe tenta encerrar o burburinho: eu já vos disse para não mexerem telefone no chapa. Mana aí, afasta, aqui não é para ficar confortável, ainda há espaço, deixa outros também irem para casa, me deixem trabalhar, afasta aí. Então apanha táxi, se não consegue no chapa. E forma-se o coro: apanha táxi, já que tens dinheiro, não vem nos humilhar, motorista está a demorar. Vamos.

O motorista vibra com What`s Going On de Marvin Gaye, numas subwoofers já cansadas de libertar o que lhe restou de stereo. E o homem anima-se. Outra travagem brusca. Um Revo entra repentinamente para a avenida, de uma ruela contigua. Lixa-te, respondeu o motorista ao fuck you que saiu pela janela, quando bozinou à sua indignação.

Lá do fundo, depois de derrubar muralhas no corredor abarrotado, uma mulher, carregando o seu bebé, numa capulana, grita: Óptica. A mochila cor de rosa faz de conta protege o seu bebé. Dá a pasta, se oferece uma senhora sentada. Não precisa, reage. Já estou para descer, justifica.

– Acelera motorista, não viste Mahindra? Não queremos problemas nós. Santa Isabel ainda é longe.

– Paragem, Choupal, aliás, 25 de Junho. O smart kika bazou. 20.40.

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top