Smart Kika Maybe

5
4581

Aquilo não passava das 19 e um quarto, de certeza. O cobrador atira a palma à chaparia do autocarro com tais Newtons que parece mentira o a vontade com que se dedica a tal acto que soa em todo o machimbombo. Na esquina da avenida, imponente, o Smart Kika amarelo simula o arranque. Jardim, Benfica, Zimpeto.

Sapatilhas Adidas brancas, calças jeans pretas, camiseta lisa a combinar com o piso. O rapaz entra para o autocarro a segurar a sua mochila azul escuro, Nike.

O amarelinho ainda recolhe. Sorte. O motorista relaxa o motor da arca, equivalente a proeza de Noé em termos de comodidade, mas desta vez sem a aura de peregrino do divino. Os passageiros pacientam. De uma descida ingrime exposta na janela lateral à minha frente, a sirene impõe silêncio. Todos olham de soslaio para a viatura que passa.

– Cobrador, queremos voltar para casa, arranca. Não queremos problemas com a polícia.

O Smart Kika que afinal de contas é o autocarro, enfim arranca.

-Acelera, queremos chegar antes…

De dar dó um branco imaculado, cândido naquele esfrega-esfrega e txova-txova no estreito corredor abarrotado nas laterais junto aos acentos. O moço procura por onde se acomodar.

– Entrem mais – ordena Maybe, um cobrador famoso na rota por nunca ter um metical de troco. Habitualmente, quando os passageiros reclamam o dinheiro em falta, a resposta é “maybe amanhã, quando me apanhares posso te dar”. No dia do prometido, no casual reencontro: ele – maybe estás a me confundir, não me lembro de ti. Maybe estás certo…, mas que tal se estiveres errado, Boss? maybe.

Pendurados onde dá, a travagem brusca me esclarece que o assento sob o qual apoio os braços é móvel, libertou-se com a moça que estava sentada com uma criança no colo.

Na curva da Junta, a tentar meter o Iphone na mochila, posta a frente, na Avenida, da janela vê-se um Coaster Z. Verde – A. Voador. O cobrador ajusta passageiros que estão com apenas metade do corpo no interior da viatura, porque não há mais por onde se encaixar. O Coaster está a ultrapassar, e os equilibristas não se ajustam antes de perdê-los de vista. O Coaster bazou.

Um Txopela surge no para-brisa, um Toyota Platz creme, uma VW Golf 2005 azul, fazem fila, na lateral direita, um minibus branco, de vidros fumados, é seguido por um Peugeot 407 cinzento já consumido pelo sol. Seguem dois engravatados.

– Dá licença, vou descer agora. Paragem cobrador, estou para descer. Paragem. Haaa, cobrador, nem parece que ouviste.

– Haaa, agora que estamos a passar é que estás a falar. Haaa, essa nota é alta, não tenho trocos. É para eu fazer o quê? Haaa, arreia. Haaa, ainda há espaço. Me deixem trabalhar, passageiros, estou a pedir para afastar, aí atrás, deixam-lá passagem, aí no corredor, no meio…

LADRÃO, LADRÃO, LADRÃO – grita de raiva, num contrassenso com os cabelos cacheados e a saia cinzenta de racha nada discreta – a tal deixa sofrer o rapaz -, blusa branca com detalhes amarelos no bolso e na gola, além do cachecol da mesma cor no pescoço. Seu tom de pele claro avermelha-se, por baixo dos óculos escorrem lágrimas. LADRÃO, LADRÃO, LADRÃO, LADRÃO. Flagrado, ao seu lado, o moço da camiseta imaculada, por caridade, devolve o smartphone, no pesado clima de silêncio abrupto ante aquele desespero da jovem.

De sapatilhas Adidas de um branco divino, camiseta Gringo da mesma cor, calças jeans pretas e mochila preta da Nike, o flagrado desce na paragem seguinte, num passo tranquilo e sereno dos justos.

 – A vida daquele moço é assim. Eu já lhe vi noutro chapa a fazer a mesma coisa. É todos dias essa rotina, eu já lhe conheço. Não é a primeira vez. Maybe tenta encerrar o burburinho: eu já vos disse para não mexerem telefone no chapa. Mana aí, afasta, aqui não é para ficar confortável, ainda há espaço, deixa outros também irem para casa, me deixem trabalhar, afasta aí. Então apanha táxi, se não consegue no chapa. E forma-se o coro: apanha táxi, já que tens dinheiro, não vem nos humilhar, motorista está a demorar. Vamos.

O motorista vibra com What`s Going On de Marvin Gaye, numas subwoofers já cansadas de libertar o que lhe restou de stereo. E o homem anima-se. Outra travagem brusca. Um Revo entra repentinamente para a avenida, de uma ruela contigua. Lixa-te, respondeu o motorista ao fuck you que saiu pela janela, quando bozinou à sua indignação.

Lá do fundo, depois de derrubar muralhas no corredor abarrotado, uma mulher, carregando o seu bebé, numa capulana, grita: Óptica. A mochila cor de rosa faz de conta protege o seu bebé. Dá a pasta, se oferece uma senhora sentada. Não precisa, reage. Já estou para descer, justifica.

– Acelera motorista, não viste Mahindra? Não queremos problemas nós. Santa Isabel ainda é longe.

– Paragem, Choupal, aliás, 25 de Junho. O smart kika bazou. 20.40.

Artigo anteriorPrimeiro sonho de Nyembete
Próximo artigoTexto de David Bene
É licenciado em Jornalismo, pela ESJ. Tem interesse de pesquisa no campo das artes, identidade e cultura, tendo já publicado no país e em Portugal os artigos “Ingredientes do cocktail de uma revolução estética” e “José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem”. É membro da plataforma Mbenga Artes e Reflexões, desde 2014, foi jornalista na página cultural do Jornal Notícias (2016-2020) e um dos apresentadores do programa Conversas ao Meio Dia, docente de Jornalismo. Durante a formação foi monitor do Msc Isaías Fuel nas cadeiras de Jornalismo Especializado e Teorias da Comunicação. Na adolescência fez rádio, tendo sido apresentador do programa Mundo Sem Segredos, no Emissor Provincial da Rádio Moçambique de Inhambane. Fez um estágio na secção de cultura da RTP em Lisboa sob coordenação de Teresa Nicolau. Além de matérias jornalísticas, tem assinado crónicas, crítica literária, alguma dispersa de cinema e música. Escreve contos. Foi Gestor de Comunicação da Fundação Fernando Leite Couto. E actualmente, é Gestor Cultural do Centro Cultural Moçambicano-Alemão

5 COMENTÁRIOS

  1. Sweet Rosie!, you share the best photos of her. Love how you treat your fur babies. If I tried to get Mister KItty in pjs, oh, it would be a fight to the death! He is so ornery but yesterday I had a terrible headache and he never left my side. Rather he sleeps on top of my feet. They never get cold when he is here. Have a wonderful week whats left of it here. HUGS across the miles XO XO XO XO Anni Duncan Laux

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here