O homem líquido

Por: Pedro Pereira Lopes

O meu avô era uma espécie de mago. Quando eu ainda molhava a lua, ele travou o choro de umas nuvens com as suas mãos duras. Tinha estatura média, rosto chupado, usava uns óculos de lentes opacas e tinha um sorriso poupado, o que o tornava misterioso. Falava num requintado sotaque e, para onde quer que fosse, levava sempre uma gravata ao colarinho e um pequeno lenço branco no bolso da camisa.

Quando tive idade razoável para saber das coisas, descobri que afinal ele era químico, que extraía, fazendo um sumário grotesco, álcool da cana-de-açúcar. Nesta altura, os rapazes matreiros do bairro chamavam-no “o homem líquido”, devido ao consumo indesculpável de bebidas alcoólicas

um mal que talvez tivesse relação com a sua profissão e

exasperava a minha avó. Quando não estivesse deveras ébrio, ao anoitecer, ele punha-nos sentados, a mim e aos meus irmãos, e contava-nos histórias. As suas narrativas eram um mundo a desgrenhar, construíam as palavras um súbito espectáculo de novelo e a magia calhava no seu desfazer, como cócegas no ouvido ou tempestades de imagens. Para mim, aquela constelação de personagens

os animais, os guerreiros, os viajantes ou comerciantes (e também pessoas comuns),

não eram entidades fingidas, elas existiam, habitavam uma outra dimensão onde as suas bravuras ou maldades eram possíveis.

Com o tempo, porque o meu avô bebia cada vez mais e a deslembrança passou a ser uma das suas práticas, aquelas histórias foram perdendo os seus finais: a cada novo dia, as mesmas histórias tinham finais diferentes, num loop acocorado que gerava exaustão.

Saí de casa do meu avô aos dezoito anos, e quando lá vou, poucas vezes, não fico mais do que um mês.

Numa noite, nas vésperas do natal, ele perguntou-me:

Queres ouvir uma história?

Não, disse eu, num sorriso de menino, já é altura de trocarmos os papéis.

Nota Biográfica:

Pedro Pereira Lopes nasceu na província da Zambézia, Moçambique, em 1987. Estudou Políticas Públicas na Escola de Governação da Universidade de Pequim. Escreve ensaios, poesia, contos e publicou um romance. É autor da “trilogia insólita das minúscualas”, nomeadamente, o mundo que iremos gaguejar de cor (contos, 2017), mundo grave (romance, 2018) e mundo blue (ou o poema em quarentena) (poesia, 2020).

Pedro Pereira Lopes

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