Escrito por Elcídio Bila
Quando o telemóvel tocou era a hora internacional de não atendimento ao celular. Bom, se não fosse internacional era, pelo menos, entre aquelas quatro paredes não se podia arriscar tal atitude. O agravante é que Marito já não trabalhava há duas semanas e não tinha nada para tratar ao telefone, senão, por vezes, pôr música e alegrar a sua sede alcoólica. Aliás, tinha sim… até que, pela segunda vez, o celular chorava. Só faltavam as lágrimas da Wilma para a coisa ficar mesmo complicada.
Marito virou para a esquerda e para direita e para outro lado sem nome, foi mais para frente e um pouco para tráse, certamente, para um lado inexistente. O homem rebolou como um repolho numa rampa. Ao mesmo tempo, como se tivesse malária, febres a flor da pele, Maritotranspirou, espumou, soluçou, cacarejou…
Na terceira chamada, o desgraçado, não se sabe com queciências, experimentou roubar a esposa com o olhar. Inacreditável! Aquela noite, logo ela que dorme cedo, estava com um olho no livro e o outro projectado à cabeceira, como uma lanterna, donde o celular,infelizmente, não parava de cantar.
Até que a música era boa, pelo menos para o dono. Já era a quarta vez que tocava aquele beat de Jimmy Dludlu, fantástica por sinal, denunciado o drama dos transportes públicos na zona do Saul. Mas naquele instante, sem dúvidas, foi a pior coisa que Marito devia ouvir.
Quis, mais uma vez, ver se o olho que se tinha grudado à cabeceira já tinha voltado para onde não devia sair, ao livro. O homem arriscou uma pincelada de olhos à esposa, arriscadamente. Maldosamente, ela tinha, já, os dois olhos, todos, e cobertos de atenção, na velha cabeceira.
Desapontado, o sujeito voltou com os olhos e cobriu-se mesmo sabendo que a noite era bastante calorenta.
– Não vais atender? – Maria quebrou o gelo.
– Há necessidade? – arriscou o indivíduo.
– Deve ser importante, é a quinta vez que o telefone chama.
– Nada não. Quem poderá querer tratar algo nesta noite?
– Não sei, só atendendo o celular podes descobrir.
Ele baixou o lençol lentamente, mais lento que a própria lentidão. O coitado queria que a chamada parasse de vez, mas foi sem efeito, pois voltou a chamar.
Naquele instante levantou, usou todas as forças para se pôr em pé e num ápice, enfrentando todos os riscos, colocou o dedo na parte verde da chamada.
Doutro lado da quarentena, categórica, a voz chutou:
– Amor, estou a ligar-te e não atendes.
Virou para esposa, e ela, já com o livro entre os lençóis,com todas as pestanas atentas descansadas, projectou dois olhos mortíferos ao marido e inclinou a boca, numa clara declaração de guerra.
– Não estou a entender. – disse Marito a interlocutora.
– Amor, estou a sofrer. – explodiu ela, doutro lado da chamada, tirando uma respiração aflita.
– Mas quem fala? – perguntou Marito, aparentemente distraído.
– Estás mesmo a perguntar isso tu? – reivindicou ela.
O jovem, preocupado, mais fumado que o fumo, atirou a vista para trás para certificar-se da posição da Maria.
Ela, incrivelmente, estava atrás dele, ouvindo tudo que a outra voz gritava doutro lado do telemóvel. Marito se não desmaiou, fraco que é, é por respeito aos seus tomates, que, certamente, já não os tinha naquele momento.
– O que fazes aqui?
– Continua a falar, Marito. Não me estressa! – Atirou, pesadamente.
Ele, murcho, quase a enterrar-se, ficou sem norte. Aliás, ficou sem todos os pontos cardiais.
– Fala Marito! Fala!
– Dá um espaço, então. – resistiu, aflito.
– Fala, senhor! – exigiu Maria.
– Não me deixa na linha, amor. Vem me ajudar?
– Afinal quem fala? – fugiu Marito.
– Sou eu, covarde, a moça que engravidaste e sumiu.
Virou-se para esposa, implorando que não estivesse mais asua atrás, mas, infelizmente, estava ali e a engolir tudocom uma dor imensurável.