Conto de Virgília Ferrão

Texto de Virgília Ferrão

Influências, natureza ou carácter?

Para quem não me conhece, o meu nome é Jensen. Ando por aí enforcado em gravatas, saltando de reunião em reunião. Já Sara, ao contrário de mim, gosta de andar descalça, e de dançar ao som de Richard Bona. O meu amor por ela nasceu como chuva de ouro. Imprevisível e surpreendente aos olhos dos cépticos. Afinal de contas, éramos de mundos opostos. E as nossas diferenças, às vezes gritavam.

— Jensen, não faz isso, eu preparo a roupa para ti! – insistia ela apavorada, toda a vez que flagrava-me com um ferro de engomar.

— Meu amor, entende uma coisa: és a minha namorada, não a minha empregada. E pior, se a tua futura sogra entrar por aquela porta e encontrar-te a engomar a minha roupa, ela mata-me!

Sara engolia um ar de atropelamento, e olhava-me como se eu fosse um extraterrestre. Ela estava bastante enrolada em suas crendices convexas sobre o papel do homem e da mulher, mas a verdade é que eu vinha de uma educação diferente. Não procurava uma empregada. O que eu queria era uma mulher com quem pudesse dividir as contas e o calor. Se fosse uma mulher fogosa e carinhosa como ela, ainda melhor. De tanto amor, um dia dei as costas à senhora “zona de conforto”, e mudei de país para morar na terra da Sara. A família dela era osso duro de roer. Longe, uma chamada no skype e a coisa se geria. Mas com a aproximação, veio a implicância do primo Derito, e o choque tornou-se evidente. O “mano Deras” achava que eu era demasiado ligado à prima e mandou muitas bocas quando soube que ambos fazíamos limpezas na casa, coisa que para ele, era tarefa exclusivamente dela. Na verdade, o meu comportamento era um problema para muitos primos e tios, que em silêncio lançavam olhares de questionamento, perplexidade, e até desprezo. Só as primas da Sara e a tia Fatiminha é que apoiavam-nos e rasgavam-se em elogios. Ao juntar-me à Sara na cozinha durante a festa de xitique em casa dos meus sogros, veio um duro raspanete. Estávamos animados a fritar batatas e beijos, quando a voz do mano Deras soou-nos nas costas:
— Na-na-ni-na-não! Moço, estás equivocado. Não sei como é lá na tua terra, mas aqui não é assim! Aqui os homens não ficam nas panelas, vai sentar com os outros, faz favor — ordenou-me com ar de marechal fuzileiro naval.

— Que pensamento antiquado sobrinho — intercedeu o Sr. Mabunda, que acabava de entrar com uma bandeja de carnes, suado pelo fogo da grelha. Era o único dos homens que não estava a embriagar-se de cerveja. – Se o rapaz quer fritar batatas, deixa-o estar, é assunto dele, nós não entramos aí!

Confesso que apanhei um porre de confusão mental. Quem devia ser pela manutenção da tradição e dos valores da velha guarda, aparecia do outro lado da quadra, advogando pelo direito que nos cabia de fazer as coisas do nosso jeito. Não queria deixar a minha Sara sobrecarregada, mas acedi sem pestanejar à ordem do mano Deras, com medo de mais um confronto com as pessoas que tanto queria que me aceitassem. Com o passar do tempo, especialmente depois que passei a sair com o mano Deras pelas noites de sexta, comecei a compreende-lo melhor. Numa destas saídas, Sara inquietou-se.

— Não quero impedir-te de ter novas amizades, Jensen, mas por favor… promete-me que vais ser sempre fiel.
Perante tal preocupação, sobrou-me apenas o riso. Por acaso tinha eu outra opção, senão ser-lhe fiel? Deixei-a em casa e fui ter com os amigos. As farras eram boas. Perigosamente boas.

— Jensen, meu brother! Quero apresentar-te uma pessoa – murmurou um amigo, chegando-se com uma heineken. Havia uma intensa poluição de fumo e estávamos num canto escuro, distante das luzes de néon da discoteca, mas pude ver as formas curvilíneas da deusa de ébano que vinha com ele, cuja saia microscópica revelava um belo par de pernas. Os lábios sequiosos e os olhos amendoados dela pediam descaradamente por mim. O meu corpo atreveu a retesar-se. Comecei a transpirar, culpando-me por olhar para ela daquela forma.

— Relaxa e mantém o style, brother. — tranquilizou-me o mando Deras — Somos todos amigos. Se queres saber, andam a dizer que não és homem, que és um palhaço domado pela Sara e não sabes comer fora. Prova lá a esses gajos que estão enganados.

Pintura de João Timane

Enervei-me a ponto de ficar vermelho.
— Sou tão homem quanto qualquer um de vocês, garanto-te.
O mano Deras virou-se para uma mulher que eu julgava ser apenas uma conhecida, e meteu a língua na boca da sujeita. O recado atingiu-me com um raio. Nada era proibido. Todos éramos cúmplices. Acontecesse o que acontecesse, Sara jamais ia suspeitar.

— Queres ir à um lugar mais sossegado, lindo? – perguntou-me a deusa, numa voz sensualmente rouca. Não fui capaz de dizer não, porque os meus neurónios tinham deixado de funcionar. Ela guiou-me até um carro no escuro e foi dentro da viatura que a coisa aqueceu. A moça fez-me sentir os seus beijos ferrenhos e as mãos inquietas dentro de mim. Mas não era o tipo de toque que acalenta e que aproxima, como era o de Sara. Eram carícias mecânicas e egoístas. Ao sentir a diferença, entendi o que estava prestes a fazer. A voz de Sara soou fraquinha algures no meu coração, pedindo para não a trair. Tinha eu outra opção, senão ser-lhe fiel? Sim… e como tinha. Mas a não queria.

— Desculpa moça, não dá. – Murmurei, recuperando o fôlego e fechando o zipe. Ela barafustou numa língua que não percebi, porém eu já não a ouvia. Sentia a pedra dura no meio das calças, mas continuei a acelerar, em fuga do doce afogo.

Em casa, Sara dormia, alheia aos trovões no meu coração.
— Jensen? – balbuciou sonolenta quando sentiu os meus braços a volta dela – Aconteceu alguma coisa? – ela percebia as estrepitosas batidas do meu peito.

— Sim – murmurei tentando reaver a voz no fundo da laringe – eu amo-te.

Sara aninhou-se nos meus braços. Ao farejar o seu corpo, entendi a verdade. Não desejava mais ninguém além dela, e preferia morrer a magoá-la. Na ânsia devastadora, tive que beijá-la para enfatizar o fogo que me consumia, pura tentação. Mas desta feita não precisava de temer, pois era um santo pecado. Despi-me da roupa, dos princípios que ainda restavam, e amei-a insaciavelmente, até ao amanhecer.

***

Virgília Leonilde Tembo Ferrão nasceu a 3 de Outubro de 1986, na Cidade de Maputo, Moçambique. Ingressou no curso de Direito, no Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique (ISCTEM) em 2004, tendo concluído o curso em Setembro de 2008. Trabalhou na empresa SAL & Caldeira Advogados, Lda., sedeada na Cidade de Maputo, Moçambique, de 2008 a 2010, como consultora jurídica júnior. Em 2011 parte para Melbourne, Austrália, para fazer o seu mestrado em Ambiente. Lançou a sua primeira obra literária intitulada “O Romeu é Xingondo e a Julieta Machangane” em 2005 e a segunda obra intitulada “O Inspector de Xindzimila” pela editora Brasileira Selo Jovem, em 2016. Actualmente, trabalha para a Anadarko Moçambique Área 1 como consultora jurídica e é administradora do blog “diário de uma qawwi”.

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