DEVOLUÇÃO DE BENS CULTURAIS ESPOLIADOS NO COLONIALISMO Devolver é preciso mas o caminho ainda é longo

Despoletado em Novembro do ano passado pelo Presidente da França, Emmanuel Macron, o debate sobre a Devolução de Bens Culturais espoliados durante o período de colonização parece longe de uma conclusão.

Há diversas vozes de múltiplas áreas de conhecimento com diferentes olhares nesta discussão que se agiganta ainda mais a medida que mexe nele.   

Vários académicos nacionais reuniram-se em Maputo para discutir, pela primeira vez na história do país, a temática.

O debate, aberto e desapaixonado, foi organizado pela Oficina de História, em parceria com o Centro Cultural Franco-Moçambicano, instituição tutelada pelo Estado francês, país que já tomou posição sobre a matéria, no sentido de as nações europeias restituírem o património lá contido, para as suas origens.

Denominado “Primeiro Seminário sobre Restituição do Património Cultural a Moçambique: História, Realidade e Utopia”, este evento surge em resposta ao debate que recentemente foi lançado, um pouco por toda a Europa, sobre o processo de devolução de objectos de Arte Africana.

Com efeito, a proposta da Oficina de História, mentora da iniciativa, é criar um fórum de reflexão, que introduza e explore os significados ligados ao conceito e à política de restituição no contexto nacional.

Em três círculos de debate, um conjunto de académicos, organizações intergovernamentais e não-governamentais, jornalistas, responsáveis de museus e a sociedade civil, assim como, curadores e artistas, discutiram esta questão à luz das suas práticas.

Resgate da dignidade

Paulina Chiziane, escritora moçambicana, que abriu as mesas de discussão com o tema “O que significa a restituição do património cultural moçambicano?”, defendeu a pertinência do processo.

A escritora, reforçando o posicionamento partilhado com o “Notícias”, numa das matérias referentes ao assunto e que serviu de base para o seminário, explicou que esta devolução iria significar a restituição da dignidade dos africanos.

O entendimento de Paulina Chiziane, que tenta chamar à reflexão sobre esta temática, desde o célebre “Sétimo Juramento”, é que o ponto da devolução não está necessariamente com os objectos, mas com a dimensão imaterial, que foi violada a partir da negação do Homem negro, enquanto pessoa.

Moçambique tem de ractificar

as convenções da UNESCO

EM representação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Ofélia da Silva tomou a palavra na mesa referente à “Legalidade das práticas de restituição”.

O Estado moçambicano, explicou, para participar deste processo a nível internacional, com possibilidade de assessoria de especialistas e de financiamentos, precisa ratificar as convenções de 1954, 1970 e 95.

“Estes documentos colocam o país em posição de, com os recursos da UNESCO, reivindicar os seus bens e ter toda a advocacia necessária, para além de poder participar de fóruns de debates internacionais sobre a temática”, disse.

Entre estas convenções, estão, por exemplo as possibilidades de os museus nacionais poderem cadastrar os seus bens e enviar a relação do que possui à Interpol, para que, por sua vez, possa intervir na arena internacional.

É preciso devolver para

não apagar a história

Kátia Filipe, historiadora e gestora de património cultural, em representação da Directoria de Assuntos Académicos da Universidade Eduardo Mondlane (DAA-UEM), interveio na sessão, que discutiu “A restituição como luta pela justiça universal”. Ela posicionou-se no lado dos defensores de que neste momento o país ainda não tem estrutura para receber esse espólio.

“Enquanto não tivermos as condições criadas é melhor que continuem onde estão”, disse, a sugerir que “enquanto isso, nós cá vamos formando pessoas e a nos preparar, de modo a que, no futuro, tenhamos como responder ao desafio”.

Em reacção da plateia, Manuela Soeiro, directora do Teatro Avenida, defendeu ser necessária a devolução, para não se correr o risco de uma parte da história do país acabar esquecida por falta de conhecimento.

Contou que com a conquista da independência houve bens retirados do Museu da Ilha de Moçambique para Portugal e sabe-se quem são as pessoas envolvidas.

“Ao devolver estes bens seria bom levar as crianças das escolas a visitar e mostrar-lhes a importância, para que quando crescidas tomem conta do nosso património”, sugeriu.

Nesse espírito, prosseguiu, a Companhia Mutumbela Gogo irá nas próximas peças inserir elementos da cultura moçambicana de modo a preservar o substracto cultural da identidade nacional.

A pesquisa e valorização do que há

podem ser formas de “resgate”

Eduardo Lichuge, etnomusicólogo afecto à Escola de Comunicação e Artes – Universidade Eduardo Mondlane (ECA-UEM), ainda na mesma sessão, que teve ainda os membros da Oficina de História, Elcídio Macuácua e Ivan Zacarias, na moderação, disse ser da opinião de que o resgate do passado não se limita a trazer os objectos e valores roubados no contexto colonial.

A pesquisa, explica, é uma das vias, pois resgata o passado e resignifica-o. “Agora estou a pesquisar sobre como é que nós moçambicanos designávamos o que hoje chamamos de música”, disse, a exemplificar que nesse processo, inevitavelmente, o que fomos estará reflectido.

Por outro lado questionou se nesse debate já se pensou nalgum arquivo sonoro, pois fica-se com a impressão de que se está com os olhos em objectos palpáveis.

“A possibilidade de reinvenção do museu” foi a penúltima mesa de debate, que contou com as intervenções de Ivan Laranjeira, director do Museu Mafalala, Rafael Mouzinho, curador de arte, e a britânica Marion Duffin, museóloga, como oradores.

Ivan Laranjeira partilhou a perspectiva na qual trabalha, que é, a partir da história e do património do mítico bairro da Mafalala, promover o desenvolvimento comunitário.

É da opinião de que para além de se olhar para fora é preciso que olhemos para o que há cá e como é que “o que existe está a ser tratado”.

Reino Unido actualiza

argumentos do “não

Marion Duffin, britânica, contou que na Inglaterra, onde este debate é mais antigo, com a pressão do Benin, por exemplo, que está a exibir suas relíquias expostas no Museu Britânico, os museólogos vão actualizando e aprimorando os argumentos para não devolver.

“Há uma resistência no Reino Unido, porque, igualmente, representa um momento histórico do país”, disse, a explicar que, para alguns, provavelmente, associada a acepção de Império, “aquelas peças recordam a bravura dos homens que estiveram nas expedições para África”.

Na resistência, continua, de modo a atenuar, em 2008, ofereceram-se a construir um museu no Benin, para o qual enviariam, a título de empréstimo, alguns dos bens reivindicados.

Mas, observa, este gesto não lhes retira a posse dos bens, pois continuariam a ser sua propriedade. O argumento para esta opção é a falta de estrutura, pessoal, entre outras condições, que os países africanos não reúnem.

As nossas frágeis fronteiras e culturas

em comum têm de se observar

A artista e investigadora portuguesa Catarina Simão, que se juntou à Oficina de História neste projecto, contou que viu, na França, algumas obras com traços makonde, de Moçambique, que são atribuídos à Tanzania.

Recorda que esta etnia sofreu nos séculos IX e XX a colonização germânica, britânica e portuguesa. A história destes encontros coloniais, prosseguiu, está representada nas recolhas de expedições etnográficas que hoje estão preservadas em colecções de diferentes museus, colecções privadas, instituições militares e de missões religiosas.

Estas colecções encontram-se hoje um pouco por toda a Europa, mas também na Ásia e América.

Catarina Simão no ano passado frequentou estágios de curta duração para pesquisa artística em alguns museus europeus, justamente com o interesse de trabalhar a relação dessas instituições e o legado colonial.

“São múltiplas as ligações à história colonial de Moçambique, de facto, contudo, há ligações interessantíssimas também com Moçambique já no período pós-independência: é o caso do Museu do Quai Branly, em Paris”, revelou.

Conforme disse, o museu gaulês tem uma colecção importante recolhida nas antigas colónias francesas, – a mesma faz parte das apreciações do “Relatório Macron”.

A maior entrada de peças makonde no Museu do Quai Branly, identificou Catarina Simão, data da década 90, “fruto do impacto que teve a exposição chamada ‘Arte Makonde: Tradição e Modernidade’ (Art Makonde, Tradition et Modernité), em Paris”.

Organizada desde Moçambique em cooperação com a França, a exposição teve lugar no Musée National des Arts d’Afrique et d’Océanie em 1989. Na altura o país manifestou vontade de fazer o levantamento da presença de arte makonde nos museus de todo o mundo.

A razão, acredita a investigadora, era restituir à nação esse património, que foi saindo durante vários anos, afectando negativamente a memória daquela etnia e, por extensão, criando, em todo o país, uma ignorância sobre a importância cultural, artística e criativa das suas gentes.

“Luís Bernardo Honwana, na altura Ministro da Cultura, contou-nos o processo atribulado que levou a essa exposição, que de facto havia nascido de um desejo de trazer de volta ao território esses materiais”, disse Catarina Simão.

A investigadora conta que, a propósito da mostra, Alda Costa, Carlos Carvalho, Paulo Soares e outros especialistas nacionais e franceses produziram um catálogo detalhado em textos e imagens.

“É um documento essencial, fruto de um trabalho exaustivo de recolhas materiais, teóricas e históricas”, acrescentou, a defender que o mesmo deveria ser reeditado e posto a disposição, novamente, pois tem a resposta a muitas das perguntas, que se puseram durante o “Seminário sobre Restituição do Património Cultural a Moçambique”.

Sendo acessível, ajudaria a responder às perguntas “o que há e onde está?” esse património moçambicano, no caso makonde, na Europa. Basta ir ver a lista de instituições que fizeram os empréstimos para a mostra.

Algumas das instituições de onde as obras vieram são museus e colecções portugueses, desde a Liga dos Combatentes à Sociedade de Geografia de Lisboa e ao Museu Nacional de Etnologia de Lisboa.

Reforçando a possibilidade de gerar-se alguns atritos entre Moçambique e Tanzania, Catarina Simões interpreta a exposição de Paris de 1989, como, em função da estrutura conceptual focada ideia de evolução da arte makonde dita “tradicional” para a dita “moderna”, uma intenção clara de distinguir, formalmente, a arte makonde produzida em Moçambique (ou por escultores moçambicanos no exílio) daquela que tem a sua origem entre os makonde da Tanzania.

O aspecto, continuou, diferenciador mais evidente está nas máscaras mapiko usadas durante os rituais de iniciação: as máscaras faciais são particulares da Tanzania, enquanto as máscaras helmo, que cobrem totalmente a cabeça do dançarino mapiko são próprias de Moçambique.

Apesar das semelhanças, refere Catarina Simão, há elementos que as diferenciam, tanto de forma, como de uso e de materialidade. “A identificação museográfica para essas peças referencia a sua origem makonde, primeiro, e depois identifica o país de origem (Moçambique ou Tanzania). Contudo, há muitos factores que podem contribuir para equívocos na designação do país”.

A investigadora explicou que quando uma peça entra numa colecção fruto de uma expedição científica a origem precisa de recolha da peça é mais certeira. “Mas no caso das peças makonde, que estão no catálogo online do Museu do Quai Branly, vemos que as peças foram doadas ao Museu por importantes coleccionadores nos anos 90, e que estas foram adquiridas em mercados na Tanzania”.

A origem geográfica dessas peças, prosseguiu, está difusa, pois, um mercado agrega peças de todo o tipo de origem e essa imprecisão é transferida para a identificação feita no Museu.

“Hoje, alguém mais desprevenido de informação pode pensar que entre a dúzia de peças escultóricas makonde existentes na colecção do museu francês todas terão proveniência da Tanzania, quando na realidade há peças belíssimas produzidas por escultores de Moçambique”.

Matilde Muocha, historiadora com interesse nas áreas de Estudos de Património Cultural, Memórias Colectivas e Indústrias Culturais e Criativas, entende que, entre outros, um dos pontos deste debate está associado a questões identitárias.

A devolução dos bens culturais para África, destacou, afecta vários sectores da sociedade e das ciências sociais. O aspecto memória colectiva e as suas implicações individuais e no todo representam uma das suas referências nesta discussão.

“É preciso que cada um de nós faça, antes de mais, a sua própria biografia e perceber qual é o seu e o lugar da sua família na história”, disse, a defender que esse há-de ser o princípio para contornar os vazios da história oficial.

Vê, neste debate, uma oportunidade para questionar, por exemplo, o lugar dos protagonistas de resistência nacional, que não seja do sul do país. O seu entendimento é de que são esses fragmentos, reunidos, que irão construir a história e a dar um entendimento mais lúcido sobre a importância de devolver esses bens.

Há por onde começar

Lindomar André, historiador moçambicano, em entrevista ao “Notícias”, explicou que há uma instituição que pode dar alguns registos concretos. Conforme descreve, o governo colonial português interessou-se, para além de sugar os nossos recursos, também na cultura, tendo investigado a pré-história, a antropologia.

“É nesse contexto que em 1934 realizou-se uma primeira conferência na cidade do Porto, em Portugal, em que o então governador José Mendes Correia tomou a dianteira, convidando a estudos pormenorizados sobre a antropologia das colónias”, disse.

Na sequência surgiram as missões antropológicas e etnográficas dos territórios dominados por Portugal. Em Moçambique a primeira foi liderada pelo médico e professor Joaquim Rodrigues José dos Santos Júnior, em 1936.

Os trabalhos, prossegue o historiador, foram desenvolvidos nas províncias de Sofala, Quelimane e depois Nampula. Houve outras nos anos seguintes. Estas pesquisas decorreram até 1959.

“O objectivo era conhecer para dominar, porque não se domina a quem não se conhece”, esclareceu, tendo acrescentado que “com essas missões pretendia-se conhecer os hábitos e costumes dos povos indígenas das colónias, conhecer a vitalidade dos makondes”.

Houve biólogos e agrónomos, conta Lindomar André, que vieram para o país para fazer as pesquisas. Nesse processo, observa, foram levados alguns artefactos para laboratório em Portugal, tendo José dos Santos Júnior como um dos responsáveis.

“As informações que tenho indicam que parte desse material acabou perdido, o que quer dizer que perdemos alguns capítulos da nossa história e estamos a falar de material único, que é arqueológico”, disse, a apontar para a gravidade da situação.

Entre o material levado nesse contexto, o historiador conta que a literatura diz tratar-se de cerâmica e obras em pedra.

Este material, continua, é importante por que ajuda a perceber como era o estilo de vida das sociedades moçambicanas da antiguidade. “Mais do que questões cronológicas, a cerâmica ajuda a perceber a organização social de um grupo social”.

A restituição dos bens culturais ajudaria a abandonar, com dados concretos, do discurso eurocêntrico que diz que “África não tem história”. Argumenta que a devolução é importante, mas não há pressa, pois “neste momento falta infraestruturas para guardá-los em segurança”.

A sociedade civil, os académicos devem junto do Governo, sentar-se e discutir como é que tal pode ser feito, onde buscar financiamento para restaurar parte desse material, entende Lindomar André.

Sugeriu que há espaços, por exemplo em Maputo, como o Prédio Pot, na baixa da cidade, que poderia ser restaurado e transformado em museu. “Há ganhos até para o turismo”.

É neste fio que trouxe a conversa à questão económica deste debate que numa visão superficial parece não os ter. “Pudemos perceber que a Inglaterra ganha muito dinheiro com os museus, que têm várias obras africanas”, disse.

Lindomar André chama atenção para uma possível resistência de alguns países, neste processo, por recearem a perda de empregos gerados pela conservação, pesquisa, segurança e afins da área.

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