BENS CULTURAIS PILHADOS NAS COLÓNIAS: … e se devolverem o património?

CAVANDO mais neste assunto da devolução dos bens culturais expolidos no contexto colonial nos países africanos, Moçambique em particular, as respostas vão indicando que a questão é ainda mais profunda. Acaba-se por destapar outros questionamentos, entre eles o valor que é dado às artes nos países em desenvolvimento, outrora tido como periféricos.

Os museólogos europeus, conforme a descrição da media, estão apavorados com a possibilidade de restituir obras de arte na sua qualidade de bens culturais de valor etnológico, sacados à revelia nos escuros capítulos coloniais da história da humanidade.

A razão, entre outras, está o receio de perder patrimónios valiosos. Vozes há que olham para o significado que esses objectos têm para o turismo. É neste ponto que pode estar um dos “nós de estrangulamento” para a devolução.

Há posicionamentos cepticistas sobre a capacidade de preservação desse património por parte dos receptores. O receio é que essas obras podem ser maltratadas e, consequentemente, acaberem reduzidas a meras dispensáveis bugigangas.

A falta de recursos humanos capacitados em matéria de conservação e pesquisa de arte são uma realidade em países como Moçambique, em que, por exemplo, tem um Museu Nacional de Arte que não actualiza a sua mostra permanente desde 1989. Neste acto, pode-se estar a apagar a história de arte de diferentes gerações, relactivamente novas.

No entanto, o debate sobre a devolução deste património orienta também uma reflexão sobre o desafio que esses países terão, seja em termos de investir na ampliação dos espaços de salvaguarda desse espólio, assim como na construção de infra-estruturas que possam se adequadar às obras por receber.

Aceite-se que esta questão fará com que os governos africanos façam avultados investimentos para garantir que o espólio não soçobre.

Sendo este debate internacional uma oportunidade para conversas adiadas, buscamos as visões de intelectuais moçambicanos.

Uma exigência legítima

Encontrámos Jorge Dias com molduras na mão, na galeria do primeiro andar do Centro Cultural Brasil-Moçambique, instituição da qual é director, em Maputo. Está a orientar a disposição das obras. Instantes depois nos recebe, a manhã já começou solorenta, são nove e poucos.

Jorge Dias

Artista plástico contemporâneo e curador, que de quando em vez empresta os seus conheciemntos à crítica – no livro “Arte e Artistas em Moçambique: Diferentes Gerações e Modernidades”, a historiadora Alda Costa o descreve como uma das vozes importantes dos últimos anos – Jorge Dias ressalva: “estamos a falar desde os finais do século XIX, até meados do passado”.

Aponta que, neste processo, o país teria de, a priori, trabalhar com a catalogação minuciosa das obras para avançar para uma legítima exigência de devolução do que poderá ter sido retirado do país à revelia.

O ex-director da Escola de Artes Visuais, em Maputo, destaca que neste debate estão fora as obras comercializadas, que, frisa, as houve. E aponta a existência de registos de encomendas feitas aos artistas makondes, na era colonial. “É preciso que se esclareça como saíram do país”, remata.

Pela condição política que o território moçambicano vivia, não descarta a possibilidade de uma larga maioria ter embarcado nas naus indevidamente. Mas não se pode esquecer, destacou, que nos saques, podem, igualmente, ter existido africanos a fazê-lo.

Conhecedor da História da Arte, Jorge Dias explica que provavelmente, neste debate, o país exigiria obras clássicas, produzidas até ao século XX. “Seriam estatuetas, máscaras”, detalha o artista plástico.

Cauteloso, adverte que há um risco, nesta corrida, de resvalar-se em nacionalismos nocivos que pouco contribuiriam para o avanço da humanidade.

Na sua percepção, apesar da legitimidade desta exigência, não se pode esquecer que as obras de arte pertencem a todos os lugares e tempos. “A arte e a cultura são uma resposta humana a diferentes questões”, diz.

O director do Centro Cultural Brasil-Moçambique entende que, face às poucas probabilidades de Moçambique e outros países africanos terem registos das saídas de arte, os antigos colonizadores teriam a responsabilidade de apoiar nesse processo.

Uma outro modelo seria, diz Jorge Dias, recorrer às catalogações existentes nos museus ocidentais. Por exemplo, há nos países europeus, prossegue o intelectual, registos em arquivos da história cultural. Os museus detentores dos artefactos, explica, têm documentadas as suas obras. E essa pode ser uma base para a catalogação do que pertence aos países africanos.

A devolução, diz, poderia aumentar as colecções nacionais dos museus. E a concretizar-se, Jorge Dias visualiza uma alteração museológica em todo o mundo, pois, ao sairem da Europa, estas obras alterariam até o entendimento que se tem de algumas formas de arte.

Sobre  a capacidade de gerir o espólio

UM receio, entretanto, faz o director o céptico: a capacidade nacional para conservar e tratar dessas obras.

A sua experiência como artista e gestor de museus, tendo passado pelo Museu Nacional de Artes, por vários anos, primeiro como curador e depois como vice-director, levam-no a declarar que “não há capacidade para lidar com esse material”.

Dias sustenta-se na – considera – má gestão do que está no país. A título de exemplo, aponta o Museu Nacional de Arte que, conforme diz, não recolheu o trabalho de artistas dos últimos 30 anos.

“A instituição, entre outros, tem graves problemas de conservação”. É como se questionasse: “caso aceitem devolver, onde é que as depositaríamos?”

Ao marginalizar a produção dessas três décadas, por tabela, está-se a correr o risco de branqueamento de parte da História da Arte moçambicana. É nesse contexto que defendeu a necessidade de, de imediato, catagolizar-se o que está em solo pátrio.

No rumo que as coisas estão a ser levadas, haverá um momento, no futuro – optimista – que aquelas obras tornar-se-ão importantes. Entretanto a instituição marginaliza muitos artistas, ausentes nas suas colecções.

Jorge Dias

O Museu Nacional de Arte, entende, deveria, caso tivesse mais recursos humanos, promover mais exposições do material que tem em sua posse, do que mantê-los apenas no seu arquivo que é, talvez, o maior reservatório do país.

A academia, conforme Jorge Dias, é igualmente convidada a desempenhar o seu papel de pesquisa que possibilitaria o conhecimento que falta sobre o significado que determinadas obras representam.

“Há pouca informação teórica sobre a arte moçambicana e as coleções estão em péssimo estado de conservação”, observa.

Destacou que, em parte, a arte que, diariamente, atrai visitantes aos maiores museus do mundo, é conhecida devido à noção que existe sobre a sua importância por haver documentos que as explicam e manuais que as destacam, no que diz respeito a história de arte.

“É preciso investir na academia”, diz Jorge Dias que é, ainda, docente. “É preciso, depois, tornar essa informação acessível”, acrescenta.

Portugal vai colaborar

NO final do ano passado Angola manifestou, através da comunicação social, interesse em ter de volta as obras de arte que estão em Portugal e noutros países europeus, fruto de roubo, na era colonial. A declaração foi feita pela ministra da cultura daquele país, Carolina Cerqueira. Na ocasião, terá dito que já havia uma equipa a trabalhar na questão.

Apesar dos “palancas” ainda não terem formalizado a vontade, Portugal já se posicionou favoravelmente. Lisboa diz-se está aberto ao diálogo com as ex-colónias em África sobre a devolução de bens culturais.

De acordo com o portal DW África, a secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação lusitana, Teresa Ribeiro, em sintonia com as explicações ministra portuguesa da Cultura, Graça Fonseca, Portugal vai colaborar com as autoridades angolanas no levantamento e possível devolução dos objetos de arte, nomeadamente os que estão sob a tutela do Museu Nacional de Etnologia, na capital.

“Angola disse publicamente, através da comunicação social, que está a fazer um determinado trabalho. Do ponto de vista oficial e formal não há nenhum pedido. O mais visado será o Museu de Etnologia, estamos evidentemente atentos à situação”, sublinha Graça Fonseca.

Na referida matéria, a DW cita declarações de Zivo Domingos, diretor nacional dos Museus de Angola, feitas à agência portuguesa, segundo as quais, se trata de uma estratégia de longo prazo abrangendo países europeus e alguns das Américas.

“A devolução dos bens culturais a África é hoje um tema transversa”, afirma a secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação. É uma matéria, segundo a governante portuguesa, que será, seguramente, ponderada.

“E será encontrada, seguramente, também uma solução que seja equilibrada e que vá no sentido daquilo que outros países europeus estão a fazer”, assegura Teresa Ribeiro.

Este posicionamento, segundo explicou, não significa que Portugal vá aceitar ou negar a requisição de devolução. É apenas uma abertura para conversar, de forma conjunta, sobre o assunto.

“Não quer dizer que não ou que sim, quer dizer que compreendemos perfeitamente que os diferentes países africanos queiram ter um acervo que lhes diz respeito, que diz respeito à sua cultura e Portugal estará disponível para dialogar, tal como vêm fazendo outros países, com aqueles que estiveram na órbita colonial do Estado português”, explica.Jorge Dias diz que debate caminhos para melhor compreensão sobre a história de arte

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