Nunca pensei que, em algum momento, eu, que se vivesse no tempo hitleriano ou que, se por algum erro ou armadilha do destino, entrasse na Líbia, fosse escravizado ou perseguido, poderia um dia ser considerado um racista!

O tempo passa devagar no lugar onde o único entretenimento é entreter uma conversa repetitiva sobre como não fizemos nada para ali estar. O tempo é ainda mais lento onde não existem relógios nem galos para o observar. O tempo é manhoso quando se encontra com o tédio, a ansiedade e a incerteza. Naquele momento, eu experimentava todas estas coisas e tantos outros sentimentos que palavras de Martin, crónicas do Albino, poesias do Taruma, dramas shakespearianos e nem contos hungulanísticos seriam suficientes para descrever. Talvez o Couto, Mia, em toda a sua plenitude, pudesse esboçar uma tentativa mais ou menos bem conseguida, mas o desafio, em toda a sua mestria, era que alguma coisa ficaria de fora e o conto seria apenas lido, mas não sentido.

Contudo, uma paz residia em mim. Não conseguia compreender o motivo para não ter medo, apesar de tantos outros sentimentos que carregava; o medo, definitivamente, não era um deles. É óbvio que queria estar em qualquer outro lugar da face da Terra a desfrutar de qualquer coisa, nem que essa coisa fosse o acto de não fazer nada. Mesmo para quem não é dado a muitas idas e vindas como eu, o simples facto de não ter escolha de fazê-lo quando se tem vontade já acarreta um custo elevado que eu não estava com disposição de pagar. Mas a ausência do medo não deixava de ser algo que residia na minha mente.

Por 27 anos, Mandela esteve preso. Era toda a minha vida sem conhecer os grandes avanços da humanidade (como os que hoje nos permitem, sem grandes ensaios, ver mulheres despidas na internet, que, ironicamente, possui o maior acervo de conhecimento do mundo, mas ainda preferimos as mulheres despidas. É preciso destacar que os avanços ora mencionados nos permitem até conversar com os nossos computadores), sem poder, arbitrariamente ou por escolha, não fazer nada.

Ainda assim, quando saiu, não havia nada no seu ser que não fosse paz. Estaria eu a ter o meu momento Madiba? Seria a certeza da minha inocência que me permitia sentir aquela ausência de medo? Não sei, até hoje. O facto é que, a dada altura, deixei-me embalar naquele chão gelado, cuja única protecção era aquele cartão de papelão, ao que os agentes da lei e da ordem denominavam Dodoma, em alusão à famosa marca de colchões Dodoma, no sono mais leve que alguma vez experimentei na minha curta existência. Não dava para um conto de fadas, aquele sono que durou uma eternidade.

Foi o barulho daquela pesada porta metálica e a necessidade de se afastar para que houvesse espaço para que se pudesse abrir que me arrancou do meu longo e leve sono. Abri os olhos e coloquei-me de pé sem ainda entender muito bem o que se passava. A luz que agora adentrava pela porta, pelas aberturas por cima da porta e por pequenas frestas na porta, dava a entender que já era de manhã. Que horas seriam? O verão é traiçoeiro quando o assunto é usar a luz para determinar a hora. Portanto, não fazia ideia. Mas ainda não passava das 08 da manhã, dado que alguns agentes se preparavam para a rendição.

Convidaram-nos respeitosamente a abandonar momentaneamente o nosso aposento colectivo. O convite foi-nos estendido pela pessoa do oficial de permanência do dia, que também tinha sido o responsável pela minha admissão àquele local.

— Vocês aí, saiam, banho! — berrou. — Tirem esses Dodomas e peguem na vassoura, façam limpeza aí — prosseguiu o chefe, que se fazia acompanhar por duas agentes estrategicamente posicionadas e com as armas carregadas e prontas para disparar em qualquer um de nós que considerasse ver aquela como uma oportunidade para experimentar a tão almejada liberdade.

— Peguem naquele balde, a torneira está ali — disse, apontando para uma torneira que ali se encontrava, à entrada de uma das duas casas de banho.

De seguida, colocou os olhos em mim e proferiu, com a maior indignação, a frase a seguir:

— Este preto é racista!

— Qual? — indagaram as agentes.

— O Rasta — respondeu. — Ele acha que é superior porque anda com brancas, acha que pode faltar ao respeito à polícia porque namora uma branca.

O olhar que me foi lançado era de nojo. Gostaria eu de conhecer um léxico que me permitisse descrever o olhar das agentes e de todo um pelotão que se encontrava naquele local de maneira mais leve. Contudo, não consigo encontrar tal palavra. A expressão que me ocorre é mesmo esta: nojo.

Sem direito a defesa ante aquele ataque vigoroso, envergonhado e um pouco confuso, já com o efeito do álcool desfeito, finalmente começava a compreender o motivo para lá estar. Era um racista!

(Continua…)

Stélvio Martins
Um humilde silencista