No artigo anterior, questionei a eficiência da fusão ministerial entre Cultura e Educação no novo governo moçambicano, sobretudo no que diz respeito ao seu impacto nas incipientes indústrias culturais e criativas do país — um projecto lançado no consulado de Guebuza e mantido por Nyusi.
Continuando essa reflexão, recuo agora a um debate anterior: a própria condição material para que tais indústrias existam. Há quem considere anacrónico, em pleno século XXI, falar de infra-estruturas culturais básicas quando o discurso global se foca em streaming, NFTs e inteligência artificial. Todavia, como lembra Tolstói no primeiro capítulo de “O que é arte?”, até as potências europeias do século XIX — da Rússia à Inglaterra — investiram primeiro em teatros nacionais, museus e academias antes de colher os frutos da sua hegemonia cultural.
O Mito do “Salto Tecnológico” sem Bases Físicas
Moçambique insiste em debater políticas para indústrias criativas sem resolver um pré-requisito óbvio: a quase inexistência de infra-estruturas culturais funcionais. A única Escola Nacional de Música com escassez de instrumentos, museus com acervos empacotados há décadas ou sem fundos para aquisição de obras são a regra, não a excepção. Como exigir que surja um “Nollywood moçambicano” sem estúdios de gravação, ou uma indústria musical sem salas de ensaio com isolamento acústico?
A Resolução n.º 12/1997, que introduziu o conceito de indústrias culturais no país, falava em “espectáculos culturais” e “estúdios de gravação”. Mas quantos municípios têm hoje um auditório com equipamento de som profissional?
Com efeito, elenco alguns exemplos africanos de sucesso — os mesmos que usei como referência no artigo anterior —, que ilustram como investimentos em infra-estrutura cultural geram retorno económico:
- Nollywood (Nigéria)
- A Nigerian Film Corporation (NFC) não só regulamentou o sector como criou film hubs em Lagos e Abuja, com estúdios subsidiados e programas de formação técnica.
- Resultado: 2.500 filmes produzidos por ano, gerando 1 milhão de empregos e contribuindo com 2,3% para o PIB nigeriano (UNESCO, 2023).
- África do Sul:
- O Artscape Theatre na Cidade do Cabo e o Market Theatre em Joanesburgo são modelos híbridos: recebem subsídios estatais mas operam como business units, alugando espaços para ensaios e coproduções internacionais.
- Resultado: A indústria musical sul-africana, alimentada por estas infra-estruturas, vale hoje 160 milhões de dólares anuais (Dados do DAC, 2022).
Moçambique: O Que Falta Fazer?
Para que as indústrias culturais moçambicanas deixem de ser um powerpoint e se tornem realidade, sugere-se:
- Robustecer a Escola Nacional de Música (actualmente sem orçamento para manutenção de pianos, entre outras faltas) como pólo de formação e incubação de talentos.
- Converter antigos cinemas coloniais (como o Gil Vicente em Maputo) em hubs criativos multiusos, seguindo o modelo do Nafasi Art Space na Tanzânia.
- Parcerias público-privadas para infra-estruturas: O caso do Kenya Cultural Centre (Nairóbi), gerido pelo Estado mas com lojas e cafés alugados a empreendedores, cobrindo 40% dos seus custos.
Neste sentido, a fusão Cultura-Educação pode ser positiva se garantir que escolas tenham bibliotecas, salas de arte e oficinas de criatividade. Porém, sem investimento paralelo em infra-estruturas profissionais para artistas já formados, o país continuará a exportar talentos — como o músico Moreira Chonguiça, que grava na África do Sul por falta de estúdios em Maputo.
Como alertava o relatório “The Arts Economy in Africa” (British Council, 2021): “Não há indústrias criativas sem espaços de criação, e estes não surgem por decreto — mas por políticas públicas concretas”. O novo ministério terá essa lucidez?
