Se leio Rabhia com Aristóteles, este romance de Lucílio Manjate é uma comédia porque imita – na acepção de mimesis – acções de homens piores. No entanto, há desdobramentos que Aristóteles, limitado pelo seu tempo, não alcançou. Isso permite-nos classificá-lo antes como uma sátira necropolítica, sobretudo pelo seu desfecho absurdo, que não restaura a ordem (como se espera da comédia), mas ilumina a podridão sem redenção. Tal leitura situa a obra no drama moderno (Beckett, Brecht) ou na tragédia pós-colonial, onde não há hamartia individual, mas culpa sistémica.
Por isso, enquadro-o na sátira necropolítica: género híbrido que adopta a estrutura do romance policial para expor a banalidade do mal (no sentido de Arendt) nos Estados pós-coloniais. Rabhia não é comédia, mas tragédia necropolítica – onde a mimesis aristotélica é corrompida pelo realismo sujo do policial periférico, e a katarsis é substituída por indignação política.
O sujeito poético (ex)põe – como diz Alex Villas Boas, “o poeta para fora”, inspirado na reflexão heideggeriana sobre o poético – um indivíduo em busca de sentido das coisas. Bernardo, protagonista, é um estagiário ambíguo de Sthoe (antigo militar e agora investigador da Polícia de Investigação Criminal), que queria cursar Direito ou Economia, talvez para agradar ao tio Vanimal – figura sinistra, comandante influente nos ministérios da Defesa e do Interior, com um passado manchado por nódoas.
O desfecho do enredo é absurdo. A morte – outrora temida pelas religiões, filosofias e saberes tais – faz-se banal, convertida em instrumento de interesses individuais. Rabhia morre, supostamente, se Amargarida diz a verdade, para ensinar Bernardo sobre a vida. Eis a ironia trágica à la Sófocles (Rei Édipo): fugiu da guerra em Nampula e acabou cadáver na Rua da Candonga, em Maputo, vítima de uma overdose de haxixe injectada pela própria mestre em prostituição.
Bernardo descobre então o ntsutsu do álcool – afogado até ao tutano – como escapatória à perda de sentido. O que é a vida?
O poder de matar – a quem o detenha com os recursos do Estado. Achille Mbembe escreve, na Necropolítica, que o direito de matar é uma das conquistas dos Estados modernos – tanto no Ocidente como em África. O comandante é o autor moral do crime; o cúmplice, um agente da polícia que quer salvar a pele após ter morto a esposa, dezoito anos antes. E vai impune protegido nas sombras do Estado.
Estamos perante um romance pós-colonial, pois nas entrelinhas questiona a realidade de uma polis corrompida por certos libertadores. Os calabrenses saqueiam comboios, mas também a ética (ethos). A justiça (diké) não se serve da razão (logos) para alcançar juízo universal. Estes são os condenados ou, nas palavras de Marcelo Panguana, os “vagabundos da pátria”?
Importa esclarecer que poiesis, neste contexto, não designa o género poesia, mas sim o conceito filosófico que estrutura o pensamento sobre a literatura. A partir da acepção aristotélica, a poiesis compreende prosa e verso como meios pelos quais se significam, imaginam ou projectam acções humanas. A mimesis é, então, a imitação daquilo que poderia ter sido. Rabhia representa uma sucessão de eventos plausíveis pela falta de escrúpulos que nos define. Poderia ter ocorrido.
Nalguns aspectos, este policial dialoga com O Caso do Cadáver Esquisito (2021), de Pepetela, não só pela fusão de investigação e sátira política, mas pelo motivo comum: um cadáver sem identidade que desvela a podridão das elites. Com devidas reservas contextuais, há também ecos de Morrer na Praia (2021), de Kalaf Epalanga, thriller urbano que envolve um corpo numa praia de Lisboa e a exploração de imigrantes africanos.
Assim, Manjate concretiza a tese de Carla Portilho: no romance policial periférico, o crime é pretexto para examinar relações de poder e processos de exclusão nas sociedades contemporâneas.
Por meio da técnica de foreshadowing, o autor insere pistas subtis – simbólicas, dialógicas ou situacionais – que prenunciam acontecimentos futuros. Ora orienta o leitor, ora o trai, pois é impossível discernir qual interrogado ou investigador é o verdadeiro culpado. A minha leitura seguiu a pista de Amargarida – reconheço os riscos ou equívocos.
Como é frequente no género, o narrador é heterodiegético, omnisciente, com intrusões críticas, polifonia de vozes (os inquiridos) e marcas de oralidade. Tudo ao serviço do suspense (policial) e da denúncia social (literatura engajada). Em certos momentos, esse narrador lembra o de O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós – se imaginado como um detective moçambicano pós-colonial, entre Saramago e Chester Himes.
A fragilidade de Rabhia está nas promessas de profundidade que não chegam a cumprir-se. Fica-se a sensação de que tudo termina nas preliminares, apesar de o cenário e os elementos fulcrais estarem bem construídos.
Por fim, Manjate subverte o género policial ao não apresentar um detective brilhante (à la Sherlock), mas investigadores cúmplices, incapazes de resolução. Apenas repetição: o ciclo da violência continua. O narrador omnisciente é, ele próprio, cúmplice da necropolítica – como o de O Crime do Padre Amaro, mas sem a ironia redentora.