José Cabral, um dos nomes mais influentes da fotografia moçambicana contemporânea, morreu esta semana em Maputo. Tinha 72 anos. Discreto, contundente, atento e incansável, Cabral não foi apenas um fotógrafo, foi um espelho crítico da sociedade moçambicana, um narrador visual das suas contradições, fragilidades e sonhos.

Nascido em 1952, começou a fotografar profissionalmente logo após a independência, em 1975, como técnico de imagem no Instituto Nacional de Cinema. Passou pelas redacções do Notícias e do Domingo, colaborou com Rangel, ensinou jovens no Centro de Formação Fotográfica. Mas o seu percurso nunca foi de fácil catalogação. Cabral fazia da imagem um espaço de reflexão íntima e política, recusava a neutralidade e os clichés da “fotografia africana” vendável ao gosto europeu. Era, antes de tudo, um homem de rupturas.

Nas suas últimas grandes exposições, “As Linhas da Minha Mão” , “Anjos Urbanos e Espelhos Quebrados”, inscreveu-se sem pudor nos enquadramentos que propunha, tornando a autobiografia uma ferramenta crítica e artística. Fotografou filhos seus e filhos dos outros, vidas marcadas pela desigualdade social e pela diferença de cor de pele, cruzando-as com imagens quase confessionais, em que o próprio corpo se tornava matéria estética e política. Com De Perto, uma antologia dessas séries, aprofundou uma pergunta essencial: que lugar ocupa quem observa? E o que significa, nesse lugar, ter memória?

A sua influência é imensa entre as gerações mais jovens de fotógrafos moçambicanos. Era visto como “mestre indisciplinado”, generoso no pensamento, exigente na ética da imagem. Nunca se acomodou à celebridade ou à estética fácil. Lutava, como ele próprio dizia, “para viver como fotógrafo em Maputo”, tarefa hercúlea num país que raramente garante sustentabilidade às artes visuais.

A Associação Kulungwana, com quem publicou o livro Moçambique, evocou a “sensibilidade única” de Cabral e o seu “olhar profundamente humanista”. O artista e músico Stewart Sukuma, que trabalhou com Cabral na fotografia de capa do seu primeiro álbum Afrikiti, captada no Xikelene em 1995, recorda-o num testemunho comovente:

“Tu nunca vais morrer. Nem os meus olhos te vão deixar partir. As tuas lentes, que ampliaram o sofrimento do teu povo, são as nossas lentes de hoje. Nem a tua luta silenciosa será esquecida.”

“Morreu José Cabral, um fotógrafo discreto, sem papas na língua, e que fez da sua luta a de todos nós. Eu fiz parte dessa luta, fiz parte do percurso deste fotógrafo maior e tenho muito orgulho de dizer que, das poucas vezes que estivemos juntos, aprendi, e muito. Estética, enquadramento, cor, luz… e sempre se fez luz. Somos teus continuadores, hoje e sempre, pelas tuas lentes.”

José Cabral fez luz. Fez silêncio. E nesse silêncio, uma voz profunda que continua a interpelar-nos: sobre o que vemos, como olhamos, e o que escolhemos não ver. A sua morte não encerra um capítulo, apenas nos devolve, mais uma vez, à responsabilidade de continuar a pensar com imagens.