No Jornal “El País”, Juan Cruz lamenta o silêncio dos intelectuais perante as novas ditaduras. Na “Revista Ñ”, Laura Ramos escreve sobre Lima, que poderia ser Luanda, quem sabe. São, sem dúvida, ecos de Borges, crónicas do desassossego. Acabara de lê-las quando me deparei com a notícia, que evitei. Já bastava o mundo em frangalhos.

O dia 6, quinta-feira, passou entre ensaios no Centro Cultural Peruano e um café na Avenida Larco, em Miraflores — breves fugas. Ao anoitecer, contra toda a resistência, a realidade impôs-se. E o teu nome outra vez nas manchetes: Mário Vargas Llosa (1936-2025).

De repente, voltei a 2015, quando te vi pela primeira vez, não pessoalmente, mas através das páginas gastas de A Tia Júlia e o Escrevinhador. Estava num quarto alugado na Avenida Karl Marx, com o vento a sacudir a janela, enquanto um rádio de pilhas sussurrava notícias em castelhano. Lembro-me de ter fechado o livro e sorrido — não pela comédia, mas pela forma como capturavas o absurdo com a precisão de um cirurgião.

“Na civilização do espectáculo em que vivemos, a cultura tornou-se entretenimento, e o pensamento crítico, um artigo de luxo”, escreveste naquele teu ensaio impiedoso sobre o nosso tempo. Era essa tua voz incómoda que me fascinava, a maneira como rasgavas o véu da frivolidade contemporânea. Lima, Piura, a selva peruana — tudo parecia tão distante, e ainda assim tão próximo, como se fossem os becos da Mafalala ou os mercados de Nampula.

Chegaste e instalaste-te numa estante onde já moravam José Craveirinha, Gabriel García Márquez e o velho Hemingway. O Ungulani ainda não tinha chegado. Mas não era o Peru que eu buscava nas tuas palavras — era a minha própria desmedida, aquela que só a literatura consegue nomear.

O Pantaleão que criaste, Vargas Llosa, podia muito bem ser o sargento Manjate, que comandava o posto policial na minha rua, em Maputo, com a mesma mistura de ridículo e tragédia. O barulho dos txopela na Avenida Eduardo Mondlane, por um instante, calou-se para ouvir os diálogos afiados de Conversa no Catedral.

Nunca te perguntei se conhecias a Rua da Sé, mas quase certeza que não. Ainda assim, parecias saber tudo sobre os nossos pequenos podres, os nossos heróis fracassados, as nossas paixões desengonçadas. As tuas histórias eram espelhos — às vezes deformados, mas fiéis.

Talvez a Paulina Chiziane se lembre daquela vizinha que lia romances aos gritos, como a Madame Bovary dos trópicos. E tu, Llosa, descreveste-me um coronel que dava ordens a um exército invisível, tal como o tio Zeca, que, depois da terceira cerveja, recriava batalhas da Frelimo no quintal. É o que faz a grande literatura: transforma o particular em universal, sem perder o cheiro da terra.

Borges, outra vez. Num dos seus labirintos verbais, dizia que um clássico não é um livro que todos leem, mas um que nunca termina de dizer o que tem a dizer. Não fui o mesmo depois de atravessar A Guerra do Fim do Mundo. Novas perguntas surgiram, velhas certezas desmoronaram-se.

Há livros que a gente lê e esquece. Outros há que nos leem, que se infiltram nas veias, como uma conversa rouca com um velho amigo, anos depois do último adeus. Entre os salões de Madrid e as favelas de Lima, és, de facto, um escritor no mundo.

A Academia Sueca coroou-te em 2010. Depois de A Festa do Bode, declararam: “pelas suas cartografias do poder e da resistência individual”. Não há engano. Fizeste da literatura um acto de rebeldia. Senão, o que é A Cidade e os Cachorros?

Outra notificação confirma: Mário Vargas Llosa morreu. Desligo o telefone. Cansado de necrológios.

Juan Cruz e Laura Ramos, choramingando sobre a Europa em crise, a América Latina em frangalhos, são unânimes no pessimismo: “A liberdade é uma excepção na história” — Cruz.
“Desta vez, não há finais felizes” — Ramos.

Mário Vargas Llosa, felizmente os romancistas não morrem… um brinde ao Zorro Invisível.