Gradualmente, as lamúrias sobre a ausência de produções cinematográficas de qualidade em Moçambique vão-se tornando assunto a preto e branco. É certo que, popularmente, ainda temos as referências da geração que deu start nos sixties e se consolidou nos eighties e nineties do século passado.

Novos nomes, em contraste com o encerramento generalizado — sobre o qual já ninguém se queixa, para quê? — das salas de cinema, vão surgindo. E nisso há que celebrar plataformas como a Netflix e a Prime Video, que servem de janela para aceder a esse novo cenário global. Igualmente, os concursos e festivais internacionais jogam o seu papel, revelando talentos que, de outra forma, ficariam confinados a circuitos locais.

Dentre essa nova vaga de produções mainstream, surge Mr. & Mrs. Smith (2024), série da Prime Video protagonizada por Donald Glover e Maya Erskine. A sua assinatura — ou melhor, a do realizador Hiro Murai — está em produções como “Atlanta e “Swarm”, conhecidas por misturar humor ácido, crítica social e um estilo visual distintivo. É sobre esta reinvenção do thriller romântico de 2005 que discorrem os próximos parágrafos.

Num apartamento luxuoso, minimalista, quase asséptico, dois desconhecidos são emparelhados como marido e mulher numa missão de espionagem. A química entre os dois — esse elemento intangível que pode elevar ou arruinar uma narrativa — é aqui tratada com uma frieza calculista, como se o próprio script tivesse sido escrito por uma IA treinada em diálogos de noir pós-moderno.

A vilania, claro, é comum: o sistema, as agências de inteligência, a própria natureza da relação contratual que os une. John (Glover) e Jane (Erskine) são criaturas de um universo onde a emoção é um risco operacional.

— *Nunca sabemos quem está do outro lado — diz ela, num raro momento de vulnerabilidade.
— Isso é o que faz o trabalho funcionar — responde ele, encapsulando a tese da série: a intimidade como falha de segurança.

A crise da trama instala-se quando os dois, presos numa teia de mentiras institucionais, começam a questionar se o seu romance é real ou apenas mais uma cover story. A série balanceia entre o glamour do espionagem à Bond e a banalidade existencial de um casamento millennial — mas falha em mergulhar fundo em qualquer dos lados.

Com a premissa de subverter o thriller de ação romântico, “Mr. & Mrs. Smith” oscila entre um comentário social ácido e um exercício de estilo vazio. Escapando aos clichês do género, a série tem a intenção — à luz do seu material de promoção — de nos fazer reflectir sobre a performatividade das relações modernas. Murai e Glover querem dar-nos uma observação sobre o amor num mundo hiper-vigilado, onde até os sentimentos são classificados.

Porém, fazem-no de modo irregular. Quando Jane dispara pela primeira vez, já é presumível que a série optará pelo style over substance. Há falhas notáveis nos diálogos, que parecem ter sido escritos para soundbites de trailer em vez de cenas orgânicas. E a química entre os protagonistas, ainda que intencionalmente tensa, pouco disfarça que se trata de um experimento cool mas inconsequente.

Embora, em muitos casos, se argumente que a série é uma “evolução” do filme original, neste caso, a comparação é inevitável — e desfavorável. O “Smith” de 2005, com toda a sua leveza, sabia ser fun. Este, apesar da fotografia impecável e das referências cult, parece mais interessado em ser admired do que loved.

Ficha técnica da série
Título: Mr. & Mrs. Smith (2024)
Realização: Hiro Murai (ep. piloto)
Elenco: Donald Glover, Maya Erskine, Paul Dano, Parker Posey
Produtora: Amazon Studios
Disponível em: Prime Video