Tomei banho, penteei o cabelo, até me perfumei, aguardando ansiosamente a chegada dela à minha casa para a despedida. Era um momento de introspecção, porque Marta se ia embora, viajava assim, de volta à sua terra natal, Angola. Mil e uma vontades me ocorreram, como forma de tornar inesquecível aquele adeus. Foram, literalmente, mil…
Eu era o mais próximo de todos os seus amigos moçambicanos – é o que ela vivia a me dizer. Mas Martinha não sabia que, mais do que isso, eu tinha outras intenções para nós. Gostava de, nalgum dia, acordar com ela ao meu lado, a avisar-me que a criança estava com a fralda suja – o nosso filho. Seríamos uma família. Era esse o meu sonho desde o dia em que nos conhecemos. Mas nunca tive “bolas” suficientes para dizer-lhe isso. Atiro a responsabilidade de tudo isso à minha covardia.
Fiquei de costas voltadas para a casa, olhando fixamente para a porta principal. Esperava ansiosamente a chegada dela, que só chegaria às nove. Prendia-me à porta desde as primeiras horas da manhã, antes mesmo do sol se levantar. De repente interrompe-se o intervalo de distracção, uma esbelta imagem, envolvida em curvas e contracurvas que se só se comparam às rotundas da circular: era ela, com o seu formoso vestido vermelho. Estava a chegar. Cada passo da Marta correspondia a cem batimentos cardíacos meus. Chegou, Marta.
— Olá, tudo bem? Venho me despedir. O meu voo é às dez horas. Podes me acompanhar ao aeroporto, ou estás ocupado?
— Claro. Mas antes disso, tenho uma coisa a dizer-te. Devia ter dito isso logo nos primeiros dias em que chegaste a este bairro, de férias.
— O que é? Fala.
Naquele momento, fiquei sem saber quais as melhores palavras a usar. Não sabia se seria melhor ser demasiado romântico ou pautar pela via da simplicidade, já que ela era uma mulher simples, típica angolana.
Decidi: serei bem simples na abordagem.
— Olha, eu gosto muito de ti, mais do que a amizade que temos. Queria muito que fosses algo a mais na minha vida. Quando olho para os teus olhos, fico a pensar numa avalanche de neve — tão branca, mas também tão violenta. Tal e qual o meu amor: banhado na ternura, mas também na vivacidade de uma paixão ardente. És a mulher que todo homem poderia querer ter.
Nervoso pausei, engoli uma dose de saliva e respirei. Quando ia continuar, Marta interrompe-me com um jacto de gargalhadas que se estendia interminavelmente. Foram mais de quinze minutos de gargalhadas intensas. Tempo de mais para quem só ri, mas talvez razoável para quem quer transmitir coisas a mais.
— Do que é que te estás a rir? — perguntei, embrulhado em sentimentos negativamente incaracterizáveis.
Antes de responder, Marta ainda encontrou espaço para engasgar-se nas próprias casquinadas.
— Hahahahaha… você é super engraçado! Achas mesmo que eu ficaria com um tipo como tu? Olha pra mim e agora faz o mesmo contigo. Compara os níveis de vida. E, para falar a verdade, nem sou tão tua amiga assim. Se convivia contigo nas manhãs, era mesmo para disfarçar aos meus pais. Me controlam muito e querem que eu andem com tipos como tu. Lá em Angola, eu era muito maluquinha, então eles queriam que eu mudasse um pouco. E andar contigo refletia a tão desejada mudança que os meus pais queriam operar em mim. Você é muito certinho. Sorry, mas hahah… sem chance!
Nunca na vida tinha ficado tão revoltado como naquele momento. Eram tantas revelações que eu nem sabia o que dizer. A raiva subiu-me à cabeça, e o Ide de Freud quase que me assaltava a consciência. Fiquei verbalmente violento, muito violento, ao ponto de testar um vocabulário incomum – um que, até à data, eu só ouvia, nunca repetia.
— Sai daqui sua puta! Não quero mais te ver! Fazias-me de escudo quando ias curtir com os teus molwenes, e eu a pensar que eram sacrifícios por uma boa causa, que um dia me escolherias. Desaparece da minha vista antes que eu te encha de pontapés a rajadas! Sukkaaaaaaaaa!
E ela, sem se surpreender com a reacção, manteve a elegância e disse:
— Tchau, kandengue. Você não passa de um ndengue. Eu quero homens de verdade. Agora volto para a minha terra, onde sentem saudades minhas. Fica aí e vê se te tornas um pau de Cabinda.
— Pau de Cabinda?
Gravei bem as palavras dela e, até hoje, procuro ajuda entre os seus conterrâneos para compreender o que a Marta tentou me dizer com esses termos pouco familiares.
Depois do bate-boca, fechei-lhe a porta na cara. Fiz com violência, como se descarregasse toda a raiva naquele morto pedaço de árvore. E, mesmo assim, Marta não parava de rir. Ria muito, ria para eu ouvir.
E eu, raivoso, dizia para mim mesmo, para a minha consciência: Tomara que o avião se exploda, para que eu nunca mais tenha de ver ou ouvir falar desta mulher!
Ao mesmo tempo, lamentava-me sozinho, confortando-me com a ideia de que, talvez, Marta não me merecesse.
— Já não se fazem mulheres como antigamente, e nem homens como eu actualmente. O meu jeito de amar se ajeitava à década de 70. Talvez pertença a geração errada.
Para o meu dessabor, Marta vive feliz e amada, com dois filhos e casada com um magnata da imobiliária portuguesa. Passa a vida a ostentar a sua ousada luxúria, ora em Dubai, ora na China, ora nas Maldivas. E eu aqui, a passear todos os dias com caneta e papel, tentando narrar o quotidiano desta sociedade e, em contrapartida, receber umas migalhinhas que me mantenham vivo. Sobrevivo!
Dez anos depois, já recentemente, através de uma tia, fiquei a saber que Marta vai visitar Moçambique, em breve. Vem sozinha, para uns dias de férias.
Quando ouvi tremi.
Adivinha quem está a levar da síndrome de Estocolmo, neste momento?