No Museu Mafalala, deparei-me com a exposição de João Donato — cujo título, confesso, me escapava naquele momento. “Ntxuva”, recordou-me Ivan Laranjeira, curador da mostra. A ironia? “Ntxuva”, para muitos um simples jogo de xadrez africano, é, na verdade, uma tradição secular de estratégia e cálculo, como bem explica o historiador António Sopa no catálogo da exposição (patente até dia 21 deste mês).
Sopa traça as origens do jogo até ao Antigo Egipto, sugerindo uma ligação simbólica com as migrações Bantu — povos que, partindo da região dos Grandes Lagos, trouxeram consigo saberes que ecoam até hoje. Enquanto ouvia Laranjeira, reflectia sobre como essas linhas do tempo, aparentemente distantes, se entrelaçam na nossa memória colectiva. Afinal, a comunicação humana precede em milénios a globalização — esta última hoje em crise, mas aquela, resistente como o próprio “Ntxuva”.
João Donato, ceramista de técnica impecável, é um mestre na arte de esculpir narrativas. Nesta exposição, ele recria episódios históricos que ligam Mafalala ao resto do país. No alvorecer do século XX, Lourenço Marques emergia como uma cidade portuária e cosmopolita. Os agricultores XiRonga e os XiChanganas (que, diz-se, não comiam peixe) viram-se empurrados para além das margens do Estuário do Espírito Santo, enquanto os ilhéus, já hábeis navegadores, migravam para a nova urbe. Desse encontro nasceu Mafalala.
Nas mãos de Donato, o barro transforma-se em metáfora da resistência que sempre definiu o bairro. Mafalala, como historiadores têm demonstrado, foi berço da consciência anticolonial moçambicana — um lugar que se recusou a conformar-se. No livro “A Alegria é uma Coisa Rara”, António Sopa descreve como, já nos anos 1960, brancos da “cidade de cimento” cruzavam para a periferia, alguns com laços familiares do “outro lado”. Donato, possivelmente um desses viajantes, presta agora tributo ao Gato Preto, espaço que frequentou e que marca a sua obra.
Mas o artista não se limita a preservar memórias — ele fabrica mundos. Como um demiurgo, sacode a poeira do esquecimento e, nas suas peças, ergue uma mitologia própria. Nietzsche, ao falar do “deus da arte”, talvez antevisse esta função: perante a morte do divino no Iluminismo, coube aos artistas a criação de novos sentidos. Donato leva essa provocação além — tal como o cristianismo tem a Bíblia, ele convida poetas para escreverem sobre a sua obra. Mauro Brito, por exemplo, desbravou os labirintos da exposição em texto publicado no catálogo. Já em Itinerários (2020), no Camões — Centro Cultural Português, António Cabrita assumira papel semelhante.
A cerâmica de Donato não é utilitária — é contemplativa. Os seus desenhos, relevos e cores evocam a cestaria do sul de Moçambique, mas transcendem-na, tornando-se enigmas a decifrar. Cada peça é um fragmento de Mafalala, e Mafalala, por sua vez, é um fragmento do mundo.
