Afinal, tinha circulado nas redes sociais o aviso sobre o que estava para acontecer. Matias como nestes dias está muito concentrado na entrevista, desligou-se um pouco. Se quer viu os vídeos e links que a Nélia lhe enviou no WhatsApp.
Também poderia ter percebido a anómala quantidade de carros na estrada, quando estava a caminho de Maputo, mais cedo. Quando sentou-se no chapa, pôs-se a ler Marcelo Rebelo de Sousa para melhor domínio da legislação do trabalho.
No ecrã do seu smartphone está o anúncio desta vaga para o departamento jurídico da Express Logistics, a maior empresa de transporte e logística da região austral de África com sede em Joanesburgo.
Pela localização geográfica, Moçambique é um asset. Assediado por investimentos multimilionários das indústrias de oil and gas. Para concorrer nesse mercado incipiente, a Express está a abrir um escritório em Maputo.
Tem igualmente, o Matias, se dedicado a estudar o direito internacional, direito ambiental, a lei das minas e exploração. «Estás a exagerar», diz-lhe o Euclides, muitas vezes e todas as vezes ignorado.
Nessas águas navegava a mente dele. De tal modo que não reparou que as avenidas que conectam Maputo a Matola estavam vazias.
Podia até ser da hora também. Mas no fim do mês o tráfego começa mais cedo e termina mais tarde. É o dia todo.
Caminha de volta para casa. Três vizinhos encostados num muro de blocos por rebocar, conversam. «A polícia está fazer merdas, djoh» — diz um, a tirar o smartphone para mostrar aos outros o vídeo de um atropelamento de um BTR que vai por cima de uma jovem. «Porra! Esses gajos não são pessoas, djoneee!» — reage outro após o término do vídeo. «Edjoh, estão a fazer merdas esses gajos. Merdas fodidas!»
«Maza», cumprimentam ao Matias em uníssono os rapazes, daqueles acasos que parecem coreografia. «Na boa, meus Bros?» — responde o Matias. «Nada, mano Matias. A polícia está a matar pessoas muito à vontade em todo o país» — responde.
Com olhar alheio contemplava ao seu interlocutor. O vizinho então sacou o seu smartphone e mostrou o vídeo ao Matias. Arregalou os olhos em estado de choque. «Qual é a cena aqui?» — pergunta ao vizinho.
«É o que está à tua frente, meu irmão» — responde com gestos de indignação. Gente que pôs o pé na rua para gritar o que sente,
mas os donos do muro cortam o grito com faca. O Manuelito, mudjero, está com a voz rouca de tanto tentar, e o vento leva as palavras… mas o céu está pesado de fumo. «Isto aqui não é só beco não — está o país inteiro com a mesma ferida aberta no pé, a sangrar no asfalto.»
«Ham, pode ter sido por isso o adiamento da entrevista» — diz para si mesmo. Se anima. «Estás aprumado, Maza» — interrompe abruptamente o que vinha a contar. «Obrigado, irmão. Ia a um combate» — responde Matias. «E era para ser com uma camisa branca, mas enfim…» — acrescentou.
«Vai dar. Tens de representar a nós que estamos de chinelos de banho de noventa meticais do “nguenani-nguenani“. Só não estamos qualalados porque no place tem limão, sabes qual é a base.»
«Estamos juntos, irmão» — despedem-se no toque de soco. Observa que os outros dois vizinhos vestiam as mesmas camisetas gastas há mais de cinco anos. O Ngoenha, líder do grupo, que interpelou Matias é ainda vaidoso. Segue em passos calmos entre o capim e relva que transborda dos quintais laterais que definiram os limites do beco.
A turma do fuminho é a que se junta no madala Sitoe, alguns passos mais adiante. O beco é tomado pelo cheiro e névoa da cannabis e de cigarros perfumam o beco. Seu primo mais novo, esconde-se no interior do quintal do madala Sitoe. Matias finge que não o vê e vai para casa.
Sua namorada, no WhatsApp ao notar que ele não abriu as mensagens anteriores faz-lhe uma cascata de mensagens com todo o tipo de teor com aromas de ciúme e carência. Conseguiu uma bolsa para o Brasil, onde está a fazer o mestrado.
Matias reage, a explicando o dia corrido que estava. Os dias, aliás, as queixas não são apenas por hoje. Desculpa-se e não se vendo correspondido passou a ignorá-la.
«Matias, me fazes isso porquê?» — insiste ela, conhecendo o desfecho desta cena.
Questiona-se o Matias: *Estava tão perto, e agora tenho que esperar mais. Será que vão mesmo remarcar? Eles vão pensar que sou irresponsável por não ter atendido a chamada logo? Se eu não tivesse perdido a carteira, talvez tivesse chegado a tempo. Por que não fiquei mais atento? Poderia ter evitado tudo isso. Será que estou mesmo preparado para assumir um cargo assim? E se não me ligarem? Devo ligar para eles?