Há vinte anos, um poeta surgia nas sombras e luzes de Maputo. Não um nascimento qualquer, mas uma verdadeira revelação: Sangare Okapi irrompia na cena literária como um artesão de versos que costuravam carne e vazio, memória e esquecimento. No dia 3 de abril, a Gala-Gala Edições assinala as duas décadas de carreira de Sangare Okapi com o lançamento da antologia “Poemas de Revisitação do Corpo Seguido de Apoteose do Nada” , que reúne os dois primeiros livros do autor.
O evento terá lugar no Camões — Centro Cultural Português, em Maputo, marcando um ponto alto na carreira de Okapi, cuja escrita é conhecida pela sua profundidade e visceralidade. Descrita como um “baú de ossos e pérolas”, a antologia reflete a intensidade da sua poesia, onde temas como identidade, dor e vazio se entrelaçam com a urgência e a provocação de um dos poetas mais inovadores da literatura moçambicana contemporânea.
Sara Laisse e Lucílio Manjate, vozes respeitadas da crítica literária moçambicana, tentarão decifrar os enigmas de Okapi. Porque a sua poesia não se entrega facilmente: exige leitores corajosos, dispostos a mergulhar nas suas águas turvas e emergir transformados.
Okapi não escreve poemas — ele os sangra. Desde os primeiros versos, a sua linguagem é um bisturi que dissecou o corpo (próprio, alheio, colectivo) e o nada (que, nas suas mãos, se transforma em tudo). Os seus textos são cerimónias onde a carne se faz verbo e o silêncio ganha voz. Revisitação do Corpo não é apenas um título; é um ritual de retorno, uma dança com os fantasmas da identidade, da dor, da sensualidade e da morte. Já Apoteose do Nada representa o êxtase do despojamento, o momento em que o poeta, como um xamã, transforma o vazio em canto.
Pedro Pereira Lopes, editor da obra, descreve-o como “um enfant terrible da poesia moçambicana” — e de facto, Okapi nunca teve receio de ser incómodo. Os seus versos são feitos de espinhos e mel, ferindo e embalsamando. Ele fala do que muitos calam: a fragilidade da pele, a fugacidade da vida, os rastros da história em corpos negros e colonizados. A sua escrita é um mapa de cicatrizes, mas também de resistência.
Nascido em 1977, Sangare Okapi é um território literário. Professor, dramaturgo e polemista, a sua trajectória é marcada por uma inquietação criativa que recusa rótulos. Os seus livros (Inventário de Angústias, Os Poros da Concha, Fleuma) são estações de um mesmo trem desgovernado, que atravessa a existência a grande velocidade. Menção Honrosa no Prémio José Craveirinha, revelação pela FUNDAC e AEMO/ICA, Okapi não busca aplausos fáceis. A sua poesia é um desafio, um espelho quebrado onde cada fragmento reflecte uma face diferente do humano — e do desumano. Vinte anos depois, a sua voz ainda ecoa. Porque Sangare Okapi é mais que um poeta do seu tempo, é um poeta contra o tempo. E esta antologia prova que as suas palavras não envelhecem, apenas se aprofundam.