“Compêndio para Desenterrar Nuvens” é o título da última colectânea de contos adaptados de textos publicados, conforme a nota do editor, na revista semanal portuguesa Visão, de Mia Couto, apresentada ao público no dia 28 de Novembro de 2023.

Este autor regular, sempre sob a chancela da Fundação Fernando Leite Couto, propõe-nos vinte e dois exercícios de escrita neste livro. Com efeito, irei percorrer as nuances da colectânea através da análise do discurso, assumindo tratar-se de uma leitura feita sob lentes jornalísticas.

Através destes trabalhos, continuamos a percorrer a janela da imaginação deste escritor, que se distribui entre romances, crónicas, ensaios, poesias e, claramente, como esta obra atesta, contos — de se perder a contagem.

“Compêndio para Desenterrar Nuvens” é, com efeito, um livro do séc. XXI que se debate com a captura (in)voluntária dos Homens pelas máquinas e outros aspectos que nos distanciam de nós e entre nós.

É óbvio que a sociedade anda distraída, absorvida pelo imediato. Se a Europa do séc. XX se deixou seduzir pelo entretenimento na ressaca das guerras e pelo boom económico dos anos 60 e 70, à luz de Mario Vargas Llosa, no livro A Civilização do Espetáculo, no nosso contexto, a cedência ao efémero talvez seja o escape da distopia pós-colonial (tentativa de socialismo, no caso de Moçambique) e das mazelas das frustrações pelas nossas — inúmeras e incessantes — desgraças subsequentes.

Percorrendo os textos, cruzamo-nos com objectos que estão incorporados nos enredos, objectos de consumo vistos com essa resistência (?) em assumi-los, nalguns casos, como evolução, o que não constitui, de todo, uma novidade no edifício da instituição literária que é Mia Couto, cujos pilares já estão sólidos. O jardim configurado. Que flor há a acrescentar?

Este lugar-comum do autor não espanta se concordarmos com Umberto Eco ao dissecar a percepção da forma de Luigi Pareyson, segundo a qual, na “obra de arte transpiram completamente a personalidade e a espiritualidade originais do artista, que, antes de se manifestarem no assunto e no tema, se manifestaram no irrepetível e personalíssimo modo de formá-lo”.

Se Eco está certo quando afirma, no ensaio A Estética da Formatividade e o Conceito de Interpretação, que a obra revela o autor, considerando o passado de militância socialista de Mia Couto, reencontramos então Marx e Hegel, que viam na estética o evocar e realizar da alma humana um caminho para despertar o Homem. O que se revela do autor nestes escritos é uma preocupação com uma humanidade que se perde de si, absorvida pela imensidão do material, esquecendo-se da essência de ser pessoa; ele partilha dessa relação consigo próprio.

As subtilezas existenciais e eventos aparentemente corriqueiros são colocados ao serviço do fantástico e mágico que caracterizam o labor deste escritor no seu registo dos contos, já desde Vozes Anoitecidas, num trago do belo que a sua poética alcança.

A dicotomia tradicional (na ideia do folclore, da terra, de África) e o moderno do Novo Mundo — as cidades e as suas luzes — iluminam o poema Felismina, de Craveirinha. É um território recorrente em Mia Couto sob diferentes formas e desdobramentos: Terra Sonâmbula (menino Muidinga e o velho Tuahir), Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra (o estudante Mariano) e O Mapeador de Ausências (a infância de Diogo Santiago e o seu pai, Adriano Santiago) são exemplos não lineares da dicotomia supracitada.

É neste contexto que me chama a atenção o facto de Mia Couto esquivar-se ao vocábulo “idosos”, optando sempre por “velhos”, o que pode denotar o sentido literal da palavra, como, por exemplo, peças de roupa antigas, gastas, desbotadas, já sem uso. O que faz sentido se perseguirmos os contextos que muitas vezes surgem em diferentes contos: regra geral, abandonados à procura de algum lugar num mundo que persiste em os manter vivos — numa linha que não foge muito à essência do romance A Varanda do Frangipani.

Por outro lado, “velhos”, também no âmbito deste conjunto, podem ser lidos enquanto simbologia da sabedoria. Neste diapasão, encontramos uma crítica social aos tempos de hoje, em que as telas dos smartphones, laptops, iPads e afins governam as nossas vontades, necessidades, alegrias — a fotografia ideal para ser postada no aniversário, a frase feita no ChatGPT — as nossas existências, definindo o que se sabe e pensa ao ritmo dos algoritmos.

Um exemplo das questões acima é o conto O Eterno Retorno, no qual o imaginário de Dona Dorinda — que semanalmente escreve cartas aos filhos que estão na capital, nunca tendo resposta — a leva a ir até à cidade, onde os netos, noras e filhos que não a conhecem estão com a atenção fixa nos Googles da vida.

Há um sentido nostálgico, de um tempo em que a reunião de crianças na mesma casa era sinónimo de vozes sobrepostas da malta a brincar. E a denúncia de laços familiares desfeitos pelos novos colonos: Sam Altman, Elon Musk, Zhang Yiming e companhia (AI, génios!). Como quem lamenta a humanidade que se esvazia.

A questão do distanciamento entre velhos e crianças pode ser esticada a outras perspectivas. A metáfora do tempo norteia o conto O Vendilhão do Tempo, no qual o narrador mata o primo que vendia horas — sendo o único da vila que tinha relógio — por inveja. O conto fecha assim: o tempo é a mais fatal das doenças.

Sem que necessariamente se repita, encontramos traços que já se solidificaram no seu universo literário, como é o caso de, como constatou Ana Mafalda Leite no ensaio As Personagens-Narrativa em Mia Couto: Exemplo para Começar — o Personagem-Tradutor de Mundos, as dualidades do tipo temporal, referindo-se tanto aos contos como aos romances: o velho-criança, por exemplo, no conto O Colchão, que abre o livro, temos esta passagem:

(…) sei por mim que comecei a envelhecer antes de ser criança (…).

A questão do absurdo é-lhe congénita. Num ensaio em que Noa compara Mia Couto a Machado de Assis, já lhe apontava esta característica, que perdura no tempo e que agora vemos neste Compêndio para Desenterrar Nuvens: o culto ao absurdo. O Iluminismo introduz a tirania da razão, que é posta em causa. O trágico cruza-se com a risível e acutilante ironia.

No mesmo contexto de questões humanas, a dor da morte dos maridos no conto Às Vizinhas Viúvas escancara que, nalguns casos, o óbito não pesa mais do que a própria vida que as duas, do seu jeito, no seu tempo, não viveram.

Neste conto, o autor leva ao tutano a denúncia da vergonhosa — julgamento meu, que não é explícito no texto — cumplicidade da sociedade relativamente à violência doméstica e a outras microviolências sobre as quais fazemos um silêncio coreografado. E disso extrai o belo.

O estilo deste livro é, claramente, o de toda a literatura miacotiana. Sob o ponto de vista do discurso, cruzam-se o metalinguístico, o estético e o emotivo — na acepção jakobsiana do conceito — que permeiam a sua voz e, em igualdade de circunstâncias, os contos.

Mia não parece ir na mesma direcção que Brecht e Benjamin, que criticavam, à luz de Eagleton, o idealismo como capaz de recuperar uma harmonia perdida ou futura através da forma.