Eram 15h32 do dia 7 de Novembro quando passávamos pela zona da lixeira de Hulene, temida por muitos, sobretudo em tempos tumultuosos, tal qual os que se verificam actualmente. Restavam cinco de nós, já que um dos membros decidiu parar de marchar quando atracámos no bairro do Aeroporto, onde, por sinal, o pai desse fulano tem lá uma casa. Refugiou-se lá, esse meu amigo, cansado da caminhada de cerca de cinco quilómetros, percorrida desde a Avenida Joaquim Chissano, zona onde fomos obrigados a abandonar o carro por causa das várias barricadas que impediam a circulação de veículos naquela quinta-feira.

Éramos só cinco, mas às vezes chegávamos a 1000, às vezes a 100, às vezes a 20 e às vezes a cinco, aliás, muitas vezes a cinco. Só nós cinco, aventureiros da greve. Um grupo de jovens solidários com a causa do povo e que decidiu sair à rua com dezenas de garrafas de água para aliviar a sede e minimizar os efeitos do gás lacrimogéneo atirado contra os manifestantes.

Distribuímos várias dessas garrafas e, nalguns momentos, ajudávamos até os próprios polícias, que, em meio à luta, confessavam, em voz baixa, que só seguiam ordens e que também eram povo. Espero mesmo que não tenham sido confissões erguidas por palavras meramente cosméticas, ditas só para que pudessem beneficiar da água… essa nossa polícia.

Enquanto caminhávamos pela Acordos de Lusaka, vivíamos momentos marcantes na jornada. Tínhamos a errónea ideia de que o auge das manifestações já tivera sido testemunhado por nós lá no centro da cidade, onde vimos a polícia a disparar balas reais em plena Eduardo Mondlane. Afinal, não. Eram muito mais “implacáveis” nos bairros suburbanos, contra o “pobre”.

Nessa nossa longa caminhada, passámos pela Maxaquene, onde as emoções tomavam conta dos populares, como se tivessem sido dopados com doses do antigo ópio chinês, conhecido por euforizar os seus consumidores por longas horas. Tivemos de voltar a entrar no espírito da manifestação, colocando para fora toda a nossa indignação com o regime do dia, convencendo assim os “maxaquenistas” de que, embora forasteiros, lutávamos pela mesma causa. E passámos Maxaquene.

Fomos caminhando, presenciando cenários diversos e particulares em vários pontos, até que finalmente chegámos a Hulene. Ali contemplámos a grandeza da corrente popular revolucionária. Homens e mulheres de Hulene, liderados pelos “miúdos da lixeira”, enchiam a principal via e vigorosamente montavam barreiras que impediam o acesso à via, até para os veículos mais capazes, tal como é o caso dos assustadores blindados das forças especiais “nacionais”. Só para se ter uma ideia, um contentor de pelo menos 20 pés, com um peso superior a duas toneladas, foi arrastado do interior da lixeira até à estrada principal, colocado na horizontal para criar a maior barreira até então vista por nós. Blocos de pavês serviram para edificar paredes de mais de um metro, com pneus e outras coisas inflamáveis a pintarem os céus com a sua tóxica fumaça negra. Da polícia, ninguém se atrevia a passar dali… ninguém se atrevia.

Enquanto nos surpreendíamos com aquela visão, um barulho motorizado caía do céu e rasgava as nuvens negras, criando caminho até à superfície, onde centenas caminhavam, dançavam e insultavam o regime do dia. Era, afinal, o helicóptero da polícia que, de quando em vez, fazia chover gás lacrimogéneo contra os manifestantes, sem saber que, pelas bandas de Hulene, já se tinham desenvolvido técnicas de contenção daquela fumaça. Mesmo assim, era comum ver os olhos da população a lacrimejarem repentinamente, em função do efeito picante daquele gás nocivo. Os meus também.

E foi assim, com os meus olhos a circularem entre o céu e a terra, que conheci o Samurai de Hulene. Vestido à Rayden, um dos personagens do jogo virtual Mortal Kombat, que, no cume da montanha de lixo, ficava inanimado, com os braços cruzados, a testemunhar a fúria popular. Lá de baixo, todos o saudavam, sobretudo quando se atrevia a desafiar a polícia, quer pelo ar, quer pela terra. O Samurai de Hulene, empunhando uma fisga de qualidade (feita com câmara de pneus de avião), disparava esferas metálicas contra as autoridades. Era contra o helicóptero e era contra os blindados. Depois, desaparecia no lixão, aguardando mais uma oportunidade para atacar.

Tentei saber mais sobre o Samurai — afinal, era ovacionado como herói entre os manifestantes —, mas debalde. Ninguém sabia muito. Depois de ter estado lado a lado com um Batman apavorado na Eduardo Mondlane, eis que Hulene nos apresenta um arrojado herói digno de menção, que, de forma destemida, combatia as forças da opressão com o que tinha ao alcance.

Ri-me quando, em pensamento, cheguei a cogitar que até os ambientalistas deviam ovacionar o Samurai de Hulene. Construiu uma arma poderosa com material reciclado.

Antes de abandonar Hulene, rumo a Magoanine, destino final, ouvi uns barulhos que se confundiam com o som das armas da polícia e, quando o pânico já me tentava assaltar, alguns manifestantes convidaram-me a beber da calma, até porque aquelas explosões eram apenas latinhas de insecticidas e sprays diversos, recolhidos ali mesmo na lixeira e que, em função do calor do fogo, explodiam por causa da compressão. Dizem que também foi ideia do Samurai.

Nós cinco, então, mais uma vez pusemo-nos a andar e, quando já chegávamos à rotunda de Magoanine, convictos de que já tínhamos visto, sentido e ouvido de tudo, eis que, mais uma vez, caímos no espanto ao contemplar uma negociação entre a polícia e alguns “vândalos” da área.

— Vocês podem invadir o Shoprite, levem o que puderem, mas deixem algumas coisinhas para nós. Nós iremos seguir-vos. Não vamos prender ninguém — dizia uma agente, agitada com a ideia de poder saquear um supermercado indefeso.

Felizmente, não aconteceu, mas confesso que, no momento, tentei libertar o Samurai que há em mim para impedir mais uma ocorrência premeditada de vandalismo. Mas encolhi o rabo quando me lembrei da chapada que um de nós levou em plena Eduardo Mondlane, quando tentava sensibilizar um rapaz de rua para não quebrar o vidro daquela famosa pastelaria da Pandora. Não foi vandalizada a pastelaria, mas a chapada chegou-lhe bem.

Com certeza o meu mestre de artes marciais não ficaria nada orgulhoso. Ele não gosta de cobardes e, neste momento, é de cobardes que este país menos precisa.

Em Hulene e em todo o país, que Samurais se levantem, “erguendo punhos pela liberdade incondicional”.