Do nada, viu-se vestido de branco. Diante de si, um velho homem cumprimentou-o sem tirar os olhos do enorme livro que estava sobre o altar de madeira à sua frente.

— Olá, meu filho!

Sem saber o que pensar, sem entender bem o que se passava, o morto tentava abstrair o que estava diante dos seus olhos. Era um cenário que lhe parecia familiar, mas não conseguia recordar-se de onde. Estava nas nuvens, e estas, por sua vez, eram como algodão: brancas, fofas, muito brilhantes. Apesar do seu brilho, não sentia incómodo nos olhos, que durante muitos anos o tinham castigado entre idas e vindas ao hospital, sem, no entanto, encontrar solução. Não sentia dor; em vez disso, tinha paz.

À sua frente estava um velho, branco, muito parecido com as imagens dos deuses do Olimpo que tantas vezes vira nos filmes de Hollywood. O velho trajava uma túnica branca e trazia à cintura uma espada longa, com o punho dourado. Usava sandálias castanhas, que lhe pareceram ser de couro. A sua barba longa e grisalha e o seu cabelo todo encaracolado, também grisalho, davam-lhe um ar imponente. Mas foram os seus profundos olhos azuis que deixaram claro que, no mínimo, estava diante de um patrão. No fundo, ouvia uma música que lhe parecia vir de um órgão, acompanhada por vozes angelicais como nunca antes escutara.

Aquele homem não era muito diferente dos que lhe tinham dado ordens a vida toda. Por cima do altar, havia uma taça de ouro. Não conseguia ver o seu conteúdo, mas julgou ser vinho, por conta das marcas encarnadas nos escassos lábios e longos bigodes do velho senhor.

— Olá, meu filho! — repetiu o velho.

Aquela frase, dita num tom estrondoso, arrancou-o das suas divagações no mundo do imaginário.

— Olá!… Senhor…! — respondeu num tom calmo, ainda sem entender muito bem o que se passava.

Naquele instante, percebeu que a sua voz estava suave e que já não sentia dores na garganta. Sorriu e repetiu o cumprimento:

— Olá, olá! Como está?

Sentia prazer em falar e mais prazer ainda ao ouvir a sua própria voz, que não soava assim havia muitos anos.

— Eu sou São Pedro, guardião dos portões do Paraíso e da vida eterna, e estou aqui hoje diante de ti para decidir se terás direito à vida eterna ou não — disse, num tom monótono, típico de quem trabalha com burocracia há muitos anos.

— São Pedro? Vida eterna? Então… eu estou morto? Mas como é que isso é possível? Eu só tenho quarenta anos, e a última coisa de que me lembro foi de ter entrado no hospital com uma simples dificuldade respiratória. Isto só pode ser um sonho ou uma brincadeira de mau gosto! Não é possível… deve ser efeito da medicação!

Falava ininterruptamente. Enquanto isso, São Pedro apenas o observava, sem dizer uma palavra e sem perder a calma. Já vira aquele cenário várias vezes.

— Meu filho, não te assustes. Morreste apenas na Terra. Hoje tens a oportunidade de ganhar a vida eterna. As dores do mundo acabaram para ti. Aqui, caso entres, alcançarás a paz infinita. Diz-me, meu filho, qual é o teu nome? É estranho, mas não consigo achá-lo no Livro da Vida. Isso nunca tinha acontecido antes.

O homem reflectiu por um momento, enquanto tentava interiorizar tudo o que acabara de ouvir. E, calmamente, respondeu:

— Podes chamar-me “Morto”, Vossa Santidade!

— Como assim, “Morto”?! — reagiu São Pedro, incrédulo.

Ele, que sempre se conhecera como um homem de fé, via-se agora surpreendido com o que acabara de ouvir.

— Eu explico, Vossa Santidade: quando nasci, as enfermeiras e parteiras chamaram-me “Nado”. Ainda nos meus delírios de bebé, os meus pais achavam que eu não os conseguia entender, mas ouvi-os comentar com a minha avó que, se o meu pai não tivesse dado um “agrado” às parteiras, eu teria virado “Nada Morto” ou seria apenas “Óbito”. Depois disso, levaram-me para casa.

Chamavam-me “Bebete” quando eu estava com as minhas avós do campo. O meu pai disse que o meu nome era Bartolomeu e assim me registou, mas a minha mãe chamava-me “Meu”. Algumas vezes adoeci e, quando ia ao hospital, podia ouvir as enfermeiras e médicas chamarem-me “Mal-nutrido”. Quando entrei para a escola, os meus colegas passaram a chamar-me “Barto”, e os professores, “Indisciplinado”.

Quando entrei para o secundário, os colegas que tinham namoradas chamavam-me “Matreco”. Depois, arranjei uma namorada, a Cacilda, e ela chamava-me “Amor”. Depois formei-me como professor e dava aulas de Química. Os meus estudantes chamavam-me “Tabela Periódica”, pensando que eu não conhecia o apelido. Foi por essa altura que contraí problemas na vista e nos pulmões, por conta do giz. Sempre que ia ao hospital, tratavam-me por “Paciente”.

Casei-me com a Cacilda, e ela sempre me chamou “Marido”. Tivemos dois filhos, que me chamavam “Pai”. Nalguns momentos, nos pequenos desentendimentos que tive com a Cacilda, ela chamou-me “Cão”.

Votei em todas as eleições. Era conhecido por “Eleitor”. Alguns candidatos, aqueles em quem depositei confiança e a quem apertei a mão, chegaram a chamar-me “Patrão”. Sempre que ia ao mercado, as senhoras que vendiam as suas alfaces no chão dos dumbanengues, lotados de moscas e águas paradas, num cenário de vozes incansáveis que gritavam propostas aliciantes com descontos de cinco meticais, chamavam-me “Freguês”.

Fora isso, no bairro, alguns miúdos que consumiam drogas e passavam as tardes pendurados nos muros chamavam-me “Chato e Intrometido”. Nunca cheguei a conduzir uma viatura. Viajei sempre em autocarros e chapas e fui muitas vezes tratado por “Saco” ou “Boi” — este último quando viajava nas carrinhas de caixa aberta.

Recordo-me de uma vez em que saímos às ruas para demonstrar a nossa insatisfação com o custo de vida. Na ocasião, chamaram-me “Vândalo e Arruaceiro”.

E já agora, o que aconteceu para eu vir cá parar?

— Bem, meu filho, tiveste problemas pulmonares. Ao que tudo indica, inalaste muito gás lacrimogéneo, que se juntou às partículas de giz que já estavam alojadas nos teus pulmões. E, pelas notícias que tenho recebido, os médicos estão em greve e há falta de equipamentos nos hospitais, portanto, não havia muito que fazer por ti.

Contudo, nada poderei fazer se não me deres um nome. É que os mortos sem nome não entram no Céu. Teria de te mandar para aquele lugar ali, a que chamamos Inferno.

Nisto, abriu-se um buraco numa das nuvens. O Morto espreitou lá para baixo e, numa mistura de espanto e gargalhadas, respondeu:

— Mas, Vossa Santidade, aquele é o meu país! É de lá que eu venho.