Fragmentos do fim (II)

O menino que se animava pousando para os relâmpagos em dias de tempestades, crente de estar a ser fotografado por Deus, que fica no céu, como aprendeu na catequese, pousa numa fotografia a preto e branco numa das gavetas da memória. É noite, 21.30, talvez. Hoje, já adulto, revisita a infância num ápice daqueles que repentinamente conduzem a consciência a uma imagem, um pensamento…Está na sala de estar – que também é de jantar – com uma TV que já nem naquele arco-íris chega, termina no nome em mandarim da marca. Indiferente a aquela presença avariada e inútil, Cossa navega no museu que foi edificando ao longo da vida.

Leia aqui o Fragmento do fim (I)

Mais velozes que os status de WhatsApp e sem a organização de uma galeria de fotos num smartphone, vem nessa sequência desordenada o dia em que a viu de costas, as traseiras volumosas no interior de umas jeans que a mochila cor de rosa e preta Charmza não escondiam como o faziam as mechas de linha ao seu rosto assim que virou para o cumprimentar sob orientação da amiga que o Cossa já conhecia. Passaram-se anos e a imagem permanece nítida. O registro é cristalino. Tão claro que aquela tarde de mais de 10 anos passados, parecia um episódio do dia anterior.

Hesita, enquanto pensa “pena que apenas o maço de cigarros vem com a advertência: Fumar Prejudica a Saúde. A própria vida também deveria ter a mesma informação, pois ela se propõe a fazê-lo, num tropeço algures ao curvar da esquina”. Com o coração arrasgado repentinamente, ignora o cell que vibra na mesa com a chamada do Duduftido. Modo vôo.

Quer combater a procrastinação. Há três semanas que não conseguia terminar de redigir o relatório anual do departamento que dirige. Lentamente reergue a cabeça e devolve o olhar para a mesa vazia, aquela voz interior sopra: “ela podia, mesmo num estado sonâmbulo, estar aqui, sentada na cadeira da parede”. A mesa não têm bases, não têm jarras de água, sumo Pêra Rocha, não tem uma garrafa de 2l de Coca-Cola. Não têm tigelas de arroz e de caril, não têm copos, não têm pratos. Só o vazio e o laptop.

Aleatoriamente, no fundo, o Spotify reproduz “Para Lennon E McCartney”, de Milton Nascimento, de 1970, numa colaboração com Som Imaginário. É uma música cheia, com a secção metálica numa harmonia quase divina que preenche esse rock tropical embebido no jazz e na bossa nova. A dado ponto da música, Milton canta: “todo dia, é dia de viver”.

Edson, irmão caçula do Cossa a partir do quarto, queixa-se do volume da música, que afinal nem escutava. – Eu quero dormir – apelou! E acho que o Sr deveria fazer o mesmo, amanhã ainda é quarta-feira, – recordou-lhe. Nem parece que Cossa ouve aquela voz quase desesperada pela indignação de ter perdido um sono que custou a encontrar.

Volta-se para a mesa. Já é ritual chegar em casa depois da separação mergulhar em devaneios. A ida dela parece ter libertado o seu lado mais selvagem, já não pensa nos outros. Parece ter pedido o norte. A vida tornou-se uma farra para afogar as mágoas em copos e fumo. As noites e os dias são quase iguais, fora a ausência de sol. Baixa o volume ligeiramente e, aleatoriamente, reprodu-se a nova música de dois ex-Young Sixties, Hernâni e Laylizzy. Numa vibe já distante, como é óbvio pela distância do tempo, de “Come e limpa boca”.

Está numa busca de si próprio, o que sobrou de apenas seu, genuinamente seu, depois de 12 anos de um relacionamento que viu desmoronar não propriamente num ápice, que nunca é. Mas foi coisa repentina.

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