E é meu aniversário

Andou descalço, sentiu o mapa do pé sensitivo, as dores vieram, arrepiaram, por isso andou mais lento, meio manco, meio sonolento, voltou à porta, limpou o pé, entrou na sala, ligou a TV e assistiu a série que o sono não o possibilitou terminar.

No terceiro minuto do drama romântico, fechou os olhos, pisou outras dimensões, viu animais gigantes, flores enormes e problemas minúsculos, no meio do sono, escutou o som da porta, é Jota, que vem para alertar que o dia já amanheceu e tem de trabalhar. Ouviu e responder cordialmente, mas voltou a série, mas uma vez dormiu antes do décimo minuto. Sem retórica para vencer a força dos fenómenos biológicos, desligou a TV e adormeceu com mais convicção, mas agora o sono não o queria, por isso, parou no chuveiro, ligou a água, vestiu e se fez a rua.

Mesmo calçado sentiu a areia molhada, no assento viu a Katembe cada vez mais distante, a ponte tão fria, a estrada vazia, a cidade agitada, o passeio de 25 de Setembro devastado, na Fernão de Magalhães teve a coragem de olhar para Samora tão minúsculo, virou o olhar, enfrentou as escadas, sentou, abriu o laptop e mais uma vez adormeceu.

Acordou, viu a chefe a rosnar para si, terminou as tarefas que apareciam, recordou do texto que projectou no sábado, mas já não havia inspiração. Então pausou, olhou para o monitor, as folhas em branco e teve a ideia de preencher.

O tempo de sair chegou, olhou para os celulares, que não via desde ontem, recebeu felicitações, primeiro estranhou, depois percebeu que era o seu aniversário, agradeceu. Arrumou a pasta, sentou na cadeira, fechou os olhos e sentiu o peso dos anos, os medos, as desilusões, as dores de outrora. Respirou fundo, o ar não entrou bem nos pulmões, está com gripe. Esticou os pés e percebeu que tem pedras no sapato, tirou os sapatos e sentiu a areia húmida, colocou a pasta, desceu as escadas descalço, pisar o asfalto, cortou o dedo mindinho, sentou, tirou uma lágrima de raiva e percebeu o quão era vulnerável. Abriu o celular, leu as felicitações até ganhar forças de calçar os sapatos e no chão concentro da Katembe caminhar descalço, vulnerável, mas sem medos.

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