OLHAR AS AVES POR CIMA – UMA ENTREVISTA FICCIONAL COM EDUARDO WHITE (in memoriam)

* Baseada no livro Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave

Eduardo White (1963 – 24 de agosto de 2014) foi um dos maiores poetas de Moçambique.
Nasceu em Quelimane em 1963, filho de mãe portuguesa e pai de ascendência inglesa.
Foi membro da Associação dos Escritores Moçambicanos – AEMO.
A sua poesia está exposta no museu Val-du-Marne em Paris desde 1989. Em 2001 foi considerado em Moçambique a figura literária do ano. Ao longo da sua carreira foi galardoado com os principais prémios: Prémio Gazeta revista Tempo, Prémio Nacional de Poesia, Prémio José Craveirinha (2004), Prémio Literário Glória de Sant’Anna (2013).

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Quando o conheci disse sobre o meu nome; de onde esses animais constroem seus ninhos: galpões, árvores, vigas, muros, telhados, cavidade de paredes, tectos e sobre tudo que tenha um caminho para o vôo.

Hirondina Joshua: O que é escrever?

Eduardo White: Escrever é uma droga antiga, uma bebedeira que queima com lentidão a cabeça.

HJ: A liberdade evoca a estranheza, põe o homem a olhar-se de olhos vedados.

EW: Há uma ambição paciente neste modo de estar, de querer tocar a vida por cima. Voar é um fervoroso recolhimento. É estender as mãos a esse desejo que nos dói como um punhal insurgente. Lembrança não temos de esforço maior nem de ideal que nos tivesse perturbado tanto e há nisto uma verdade tão velha e antiga como o próprio homem.

HJ: A visão e depois o espaço. O poema pede entradas diversas, ora em combustão ora em favor. Como entrar num poema sem riscá-lo?

EW: Não deixes que levede a magia a que aludes. Sê devagar, sem alarmes, e o fantástico e o belo, e a vida, e o puro amor, com que deverás exercê-lo.

HJ: “O prestígio é uma armadilha dos nossos semelhantes. Um artista consciente saberá que o êxito é prejuízo. Deve-se estar disponível para decepcionar os que confiaram em nós. Decepcionar é garantir o movimento. A confiança dos outros diz-lhes respeito. A nós mesmos diz respeito outra espécie de confiança. A de que somos insubstituíveis na nossa aventura e de que ninguém a fará por nós. De que ela se fará à margem da confiança alheia.” Herberto Helder

EW:

Vivo de despir as olheiras ao sono. Este trabalho não me deixa dormir e não há remédio para isto.
O tempo, gastei-o todo aprendendo a olhar as aves e a sentir por elas uma clara e funda saudade.
E hoje, eis-me aqui com a mente cintilante no poema e como um louco escrevendo-vos.

Pássaros que só bons versos
premiariam. Não os meus
Mas os da sua plena poesia.

HJ: E o sono, mede-se?

EW: Não sei se o sono é grande ou pequeno e embora me doam nas pálpebras os caroços da fadiga, tenho que continuar. Não é justo um pássaro onde ele não pode voar.

HJ: O hermetismo é característico do poema, mesmo aquele que pareça óbvio. As palavras têm essa natureza fugidia em contraposição à imagem e ao símbolo.

EW: Digamos. É uma casa privada o pensamento.
Escolher as luas, debulhar os sóis, há-de arder de febre na sua demência e na sacrálica ilusão do seu universo eu sei que terá por certeza, por fim ou por delírio somente a fértil e mágica natureza de algum bom verso.

HJ: O lirismo agoniza os animais (as aves),  ou comunica o delírio da face brusca da alma?

EW: Constato, porém. Preciso que me aconteçam as sedas interiores dos seus movimentos, o delírio que as excede e as anima, leve, perfeito, e depois me governe essa delicada cirurgia, o seu cuidado, o seu silêncio.

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