Dívida de renda

Sérgio está receoso, a tremer com patrocínio das ameaças esboçadas, desenhadas e expostas no seu mapa cognitivo. A sua imaginação, sob curadoria do medo, exibe imagens dos piores cenários que lhe pode acontecer pelo atraso no pagamento da renda.
Com a bexiga a apertar, pressionado biologicamente, abriu a porta do quarto no fundo do pátio do prédio. Já era noite. Talvez 23.38, por aí. A música que chega vem do bar que dizem ser de um nigeriano, na avenida de trás do quintal. É lá onde os piqueiros e alfandegários terminam os dias. Parece que os trânsitos não gostam dali. Ou, pelo menos, é o que se diz. O Sérgio ia a casa de banho, imediatamente ao lado do seu quarto.
Só ao terminar de mijar é tomado por uma sensação de alívio. Não sabe se pela mija em si ou se por não ter cruzado com a proprietária, a quem deve mais de três meses de renda. Com a mão prestes a carregar no botão do autoclismo, “caramba! Vão me ouvir agora”, ouve de uma voz interior.
Não saiu água. “Ufa! Não foi desta”, repete a mesma voz. Pela hora, é óbvio que não jorra água nas torneiras da Malhangalene. Pegou no balde preto, de provavelmente 10 litros, com as maiores cautelas de querer ser leve com um lençol, despejou talvez uns dois livros e meio. A pia, que já não é assim tão branca, recuperou, na água, a transparência que tinha sido pintada pela amarelo do seu mijo. Apaga a lâmpada que é quase azul e, num ápice, as paredes brancas da Wc, que partilha com um vizinho, é tomado pelas formas dos espaços vazios entre as folhas e ramos das árvores, pilares e o prédio, por onde perfuram alguns flashes de luz das lâmpadas, candeeiros e postes.
Volta ao quarto, fecha a porta, se atira a cama na esperança de não mais acordar na vida. Ao fechar os olhos, invocava imagens dele pendurado com o corpo a pender, já sem alma que fora para fora deste mundo num enforcamento. “Parece uma morte dolorosa. Eu queria uma morte que não demorasse”, diz-lhe a sua voz dominante. Arregala os olhos, levanta e reajusta a cortina que deixava entrar um pouco da luz externa. Aumenta um lençol. Deita-se e, finalmente, apaga.
A real razão da sua vergonha é que bebe, publicamente,como quem obediência ao poema EMBRIAGAI-VOS! de Charles Baudelaire. No auge da embriaguez, declamou este excerto, certa vez: “É a hora de vos embriagardes! Para não serdes escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos! Embriagai-vos sem cessar! Com vinho, poesia, virtude! Como quiserdes!”.
Os raios do sol das 8.00 horas, picam-lhe o olho, sem os abrir, com a mão direita tenta afastar o incómodo. Em vão. Derrotado, abre a vista e entre os ruídos dos motores, buzinas, máquinas, música alta, se impõe a voz da bebé da casa, de três anos, talvez. Tem a impressão que ouve o senhorio a falar aos vizinhos que ele não paga a renda. Acredita absolutamente nisso que se escusa de levantar da cama para perceber se não é só a sua consciência a culpabiliza-lo.
Já eram 11.00, o estômago a roncar quase que aos berros. A última refeição foi às 20.00 do dia anterior. Ficou convencido que não tinha opção. Levantou-se, numa coreografia acrobática abriu a porta do quarto, a encostou, abriu e fechou por dentro a da WC. Ducha rápida. Veste e sai. Avança para o portão num passo firme que disfarça as orações que faz.
Um “pensei que não estavas” caiu-lhe aos ouvidos como um golpe a sua fé desesperada. A Misa, empregada do senhorio, insistiu: já que não te vi desde que cheguei, lá para às 6.00, não te vi, pensei que não estavas.
A interlocutora está nas costas de Sérgio. Estava cansado, sabia com quem falava, não quis virar para ela. Seguiu pelo corredor estreito que vai dar a rua. Com o pé no primeiro passo fora do quintal, um vizinho, do segundo andar, pergunta-lhe se sabe se a proprietária voltaria em pouco tempo. “Vi-lhe a sair com a filha por volta das 7.00 e me preocupei, não é habitual ela sair a essa hora”. Não sei, respondeu.
Seis passos depois, talvez, a malta da oficina se distribui pelos passeios das duas faixas que ocuparam com carros SUV, Camionetas, motorizadas, atrelados, motores e outra muitas, entre grandes e pequenas, peças.
– Epah, viste agora o Taiwan, seguindo a Ucrânia – grita o Zacarias ao Miguel, ambos mecânicos – tens Cabo Delgado, Nigéria. Sabes? As vezes penso: E se quem morreu na Covid foi quem realmente sobreviveu e nós estamos a atravessar o anunciado inferno?
– Edjoh, aumentá-la uns 12 meticais para comprarmos badjias. Vais me dizer que não tens!? – reage o Miguel. Sérgio ouve a resposta já a uma certa distância.
Ele conta os seus últimos 200 meticais, sem a adaptabilidade de um Porgy do George Gershwin mas com a inquietude e angústia do Raskolnikov de Dostoiévski, para se aguentar mais duas ou três semanas. Até lhe apetece tomar uma sopa quente, de legumes se a sorte for essa, para driblar os 17 graus celsius, e um com frango e depois uma pêra bacate gelada com limão e açúcar a medida. Mas o cálculo que faz: um pão custa 12, cada badjia 2 e para encher o pão, pelo menos umas 6. Baseado nessa equação, sabe que não tem nem 10 dias completos a fazer essa única refeição diariamente, antes que o receio volte a pintar-lhe as horas destes dias passados em riste.
Absorto nas suas equações, choca-se num maluco que veste um blaiser preto, uma camisa que aparentemente já foi branca, uma gravata vermelha com manchas de sujidade e queimadura, sem calças, pénis a mostra. “Você só anda só, não vê a frente?”, perguntou-lhe o louco. Sérgio ainda está a tentar perceber o que está a ver e é ofendido: até aquele pareces aquele teu presidente. Ham? – balbucia. Recebe uma chapada e antes mesmo de reagir é informado: vai queixar Kagame. E o maluco segue o seu caminho a cantarolar Dondza, de Roberto Chitsonzo.

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