São muitos os nossos mortos*

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Obra de Matheus Sithole

O zonido das moscas, como nos filmes, faz a música da circustância. Cadáveres diante dos olhos. Corpos estendidos no chão de barriga para o ar, de costas, de bruços. Algumas cabeças degoladas espalhadas como braços e pernas. Um dos rostos, de uma cabeça decepada, com um olhar arregalado num misto de espanto e desespero encara o Nguenha, repórter de escrita. O jornalista desvia o olhar e dá-se imediatamente a sua frente com uma mulher grávida baleada no seio esquerdo, ao lado – provavelmente o seu esposo – esfaqueado na boca do estômago, uma criança de talvez 12 anos, com moscas pousadas no pescoço perfurado até a garganta provavelmente por uma baioneta. Um bloco de notas e uma caneta nas mãos trémulas e o coração na boca prestes a sair em vómito. É um vómito de toda uma vida, que quer ser definitivo, o último acto, o seu derradeiro gesto.
O fotógrafo Sitoe fugiu com a câmara. É incapaz de registar o vermelho de sangue que tatuou a areia. É um mar de cadáveres que se estende pela vila. Foi parar a uma distância e desapareceu por instantes.
Nguenha, recuperado, se é que isso é possível, de repente, sente um toque no ombro esquerdo e se assusta. O Sitoe que o toca também se assusta. Oferece-o um cigarro, cravado a um militar, algures. Nunca tinha fumado cigarro. É um mentol aceso. Recebe, encaixa-o como quem tem a habilidade de uma vida toda a lixar os pulmões e a paquerar, de forma insistente, um cancro.
Com a morte ali já diante dos seus olhos os pensamentos sobre os efeitos do fumo ficam para depois.

“Pelo menos duas centenas de pessoas perderam a vida”, o lead óbvio, assume o Ngoenha, não é suficiente para retratar o que vê.

Homens armados do exército às gargalhadas depois dos beijos a Maria, sim a Joana mesmo, circulam pelo recinto, arrombam as portas dos casebres ao redor, na expectativa de encontrar pelo menos um que dê pistas. Apenas um só.

O que é isto, Nguenha? – rasga o silêncio o Sitoe e reacende a luz restante no túnel escuro que se formava na existência do repórter de escrita. Nguenha, de forma dedicada, a puxa o fumo do cigarro para dentro dos pulmões na expectativa de aliviar a vista, o coração e a alma. Estas pessoas estão mortas e são muitas estas pessoas. Vou escrever o quê? Vais fotografar o quê? Como? – as lágrimas jorram e seguem os contornos do rosto ainda com um semblante incrédulo do quadro triste e sombrio que contempla nesta cena do teatro de guerra.

Agora Sitoe volta à mudez, toda e qualquer palavra tem um peso que é incapaz de suportar. Nguenha pensa na Laurinda e no Aider, seus dois filhos ainda pequenos. O cheiro indescritível dos cadáveres é de tal modo perturbador que para o escriba é como se os seus pequenos já estivessem órfãos a partir do instante.
O smartphone de Nguenha vibra, seus batimentos cardíacos aceleram, querem competir com a velocidade da luz. Saca o telemóvel do bolso, transpirado e trémulo quase incapaz de qualquer outro pensamento que não a visão dos cadáveres, lê a mensagem:
Acabou energia aqui em casa, tens dinheiro no Mpesa?

*verso repetido nos poemas I e II do livro Homoíne de Eduardo White

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É licenciado em Jornalismo, pela ESJ. Tem interesse de pesquisa no campo das artes, identidade e cultura, tendo já publicado no país e em Portugal os artigos “Ingredientes do cocktail de uma revolução estética” e “José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem”. É membro da plataforma Mbenga Artes e Reflexões, desde 2014, foi jornalista na página cultural do Jornal Notícias (2016-2020) e um dos apresentadores do programa Conversas ao Meio Dia, docente de Jornalismo. Durante a formação foi monitor do Msc Isaías Fuel nas cadeiras de Jornalismo Especializado e Teorias da Comunicação. Na adolescência fez rádio, tendo sido apresentador do programa Mundo Sem Segredos, no Emissor Provincial da Rádio Moçambique de Inhambane. Fez um estágio na secção de cultura da RTP em Lisboa sob coordenação de Teresa Nicolau. Além de matérias jornalísticas, tem assinado crónicas, crítica literária, alguma dispersa de cinema e música. Escreve contos. Foi Gestor de Comunicação da Fundação Fernando Leite Couto. E actualmente, é Gestor Cultural do Centro Cultural Moçambicano-Alemão

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