ESCREVER É ATRAVESSAR O CORPO – UMA CONVERSA COM LUÍS CARLOS PATRAQUIM

Natural de Maputo, colaborou na imprensa moçambicana e portuguesa. Fundou e coordenou a Gazeta de Artes e Letras da revista Tempo, em 1984. Vive em Portugal desde 1986.
Poeta de reconhecidos méritos, publicou obras tão assinaláveis como MonçãoA Inadiável ViagemVinte e tal Novas Formulações e uma Elegia CarnívoraLidemburgo BluesO Osso Côncavo e outros poemasPneumaO Escuro AnteriorMatéria Concentrada, recolha antológica, sairá brevemente em Maputo.
Intrometeu-se na escrita dramática e o cinema é uma questão que tem consigo mesmo. Está traduzido e antologiado em diversas línguas.
Foi galardoado com o Prémio Nacional de Poesia (Moçambique) em 1995.

Sou admiradora da sua letra desde os tempos da escola secundária, pessoalmente iniciamos uma conversa em Lisboa com respostas monossilábicas, a minha timidez não me deixava.
E ele com ar divertido a fazer piadas e a falar com entusiasmo de alguns livros da literatura oriental.
Dono de um poema metafísico, místico, uma linguagem densa.
A sua escrita exige para que o leitor esteja disponível à grande “inadiável viagem”.

Hirondina Joshua: O texto veio e me esbarrou o rosto: a arcaica forma da infância.

Luís Carlos Patraquim: Apetece-me dizer que a infância é o que deixámos de saber. Irremediavelmente. Cabe-nos reconstruí-la, no sentido de que ela é a potência do devir. Não a infância como memória de um idealizado paraíso perdido. Nem ela é isso na tragicidade das disrupções políticas que a desenlaçam e impõem destinos onde se perde, inexoravelmente se perde, a apreensão do mundo. Em Moçambique, a infância morre todos os dias. E nós com ela. Cantássemos nós a inocência, como William Blake! Resta-nos a sabedoria do ditado africano: “mesmo na noite mais escura a mão encontra sempre a boca”. Não é pouco cometimento.

Olha, dedico-te este poema inédito:

cabeça

para a Hirondina Joshua

volta cabeça ao meu corpo diurno
porque estanquei a aorta
entre os arbustos

temo pela mulher de cinza
a sua litania

ei-la
os  cristais de cinza
enlouquecem-me

que o vento a recolha
sob a árvore

volta cabeça
ao meu corpo diurno
e alegra-a

HJ: No livro Elogio da loucura, de Erasmo de Roterdão, a loucura é um animal vivo e necessário no qual ninguém escapa: a válvula da existência. A deusa da loucura, Moria, expõe as razões que a fizeram a mais adorada nos vários domínios da vida humana. Pode-se desconfiar que a loucura é o instrumento da criação. Admite o contrário?

LCP: No romantismo, o daimon grego fundiu-se com o sturm und drang no que foi uma revolta contra a razão iluminista que, sem impor o irracionalismo, percebeu até às entranhas a cesura como lugar de dicção e escrita do Mundo. Hölderlin cantou-a melhor do que ninguém. Ocorreu-me este “desaguisado” porque a pergunta sugere o que intuímos: há um horror lírico no poema… paradoxalmente apaziguador.
Julgo que o Elogio de Erasmo é uma reacção, em meio das terríveis convulsões religiosas da Reforma Protestante, à radicalidade brutal de Lutero, uma espécie de primeiro Mestre da Alemanha. Erasmo empreende um visceral apelo à temperança da razão, mesmo quando reconhece a crise da Igreja Católica. Ele é amigo de Thomas More e não se entende com Lutero. Moria/More… Como diria Roland Barthes, à guerra das linguagens Erasmo tenta a paz dos textos, Mesmo convulsivos, alegóricos e seguramente genial aquele que leva o seu nome.

HJ: Poeta é aquele que quando abre os olhos vê, quando fecha os olhos vê.
A potência estranha da linguagem na construção do real e do irreal na poética passa por atravessar o invisível dentro do visível ou vice-versa.

LCP: Fico-me pela garrafa de rum da poesia. Ou pela nitidez da maçã em Sophia de Mello Breyner. Ou… Porque é tudo real… mesmo o que parece diáfano. Apego-me às coisas com ênfase, como escreveu Drummond. As de Rilke. Ou… o que vejo na geometria dos cestos, os desenhos que se entrelaçam, a poeira do Ser que as mãos espargem. As mulheres sentadas ao redor do fogo. E o Aberto, my god, o Aberto! De Heidegger à 8ª Elegia de Duíno. Cláudio Magris constata, sugere, realça o facto de o controverso filósofo ter nascido à beira do Danúbio, a grande artéria europeia. Como não lembrar os rios de Knopfli? Como não celebrar o Zambeze? Como não navegar, à sirga por vezes, na grande artéria africana? Nas quatro, as que nos irrigam o cérebro?

HJ:

13.

Um dia regressarei com o Fogo
inclinado sobre a beira-mar
e louvarei os sons harmónicos
a monotonia serial e a tortuosa disciplina
de expandir o infinito possível
ao deus implorando o sobressalto do improvável

Pudesse a obra confortar-me
e contar os dias
efabulando sobre os trabalhos porque o mundo começou

em arquipélago
e era triste nas suas escarpas
o azul incontemplado das águas
Nas formas emergindo

– Disse

E o deus temendo pela sua sorte
E a diversidade dos entes

– ó deus

Traindo-nos!
Confessando a sua finitude
e nós distraídos com o que o divino desejo ordenava
Deslumbrados entre amores e desafios e o espanto
Das partes inteiras
Metafísicas
Ágon na cidade dos corpos
– Também eu desespero e escolho e abomino os abysmos atento às sandálias cauteloso nos caminhos subindo os rios

Disse
e era o deus restante
o deus restante (Ed. Cavalo do Mar; 2.ª edição [2019])

Fissuras de um poema não se podem medir assim como a sua beleza. O extremo mora no elementar caminho para alguma invenção sobre o profundo. Como apareceu o deus restante?

LCP: Fico comovido com a sua pergunta, Hirondina. Com a atenção. E não tenho respostas. Se elas existem é porque se organizam em perguntas no poema. Só ele é… Se for… É madrugada em Lisboa. E eu estou em Maputo. Escrevo-lhe este arremedo de frases mas não posso “comentar-me”. Precisei da noite para o mergulho espiralado.

Intuo que a poesia é um excesso, a obsessiva articulação entre o corpo e a linguagem. Atrito e detrito. O corpo que a alegria precária diz, a articulação. “I had a daily Bliss” /todos os dias uma alegria, escreveu Emily Dickinson. Ela tinha: “Till when around a Height/ It wasted  from my sighth/  Increased beyond my utmost scope/ I learned to estimate” (Até que numa curva da Altura/ Deixei de a poder ver/ Fora do meu alcance e cada vez maior/ Aprendi-lhe o valor” (a tradução é de Ana Luísa Amaral)

Se todo o poema é de circunstância, o deus restante chegou-me pelo miocárdio. No meio do caos demando a alegria.

 

Luís Carlos Patraquim e Sebastião Alba - semanário Domingo 1981
Luís Carlos Patraquim e Sebastião Alba – semanário Domingo 1981

HJ: Disse noutro dia que estava neste eterno exercício de admiração: o que gostaria de escrever que ainda não escreveu? Ou a resposta se incuba na primordial razão de tudo: o mistério?

LCP: Sim, o mistério. Com a interrogação dentro. E o absurdo. Entretamo-nos com o caos da enumeração, aquele de Jorge Luís Borges, e que levou Michel Foucault a escrever “As Palavras e as Coisas”.

HJ: A poesia simbolista e o carácter hermético “perturbam” pelo processo da intuição, sensibilidade e do nível de abstração. Esse confronto arrebata os signos decadentes. A decadência dos signos postos desde o início de tudo antes e depois da iluminação do corpo espiritual.

LCP: Não acho que haja signos decadentes. Pode é dar-se a hipótese de alguns deles sejam como as estrelas já mortas, cuja luz só agora chega até nós. Sobre o simbolismo, leio “até de arderem os olhos” os poemas de Camilo Pessanha. Estremeço com “O Corvo” de Edgar Allen Poe mas não me revejo na sua “Filosofia da Composição” e “bouleversam-me” “As Flores do Mal”, do dandy Baudelaire. E, nos antípodas, que dizer de Bashô, a sua intensidade breve?

Na sua singularidade, ninguém conheceu melhor a carnalidade do corpo espiritual como Santa Teresa de Ávila. John Donne, o místico, não se eximiu a alguns intensos poemas eróticos. O que fomos fazendo, nas várias línguas que dizem e são o mundo plural foi trazer a viagem para o corpo onde, escreveu o imperador Adriano, canta como um passarinho a anima blândula “que estamos com ela”.

xiquelene

diz-me o teu nome de poema
o desenho perdido da casa

diz-me o número onde o corpo
se alumbra na sua combinação

a capulana não é o cul de sac
ó rosto que passas

eu vou a Patmos à ceifa das espículas
às zonas verdes onde danças
os exorcismos da fome
– zukuta!

diz-me a ráfia escura do teu nome
poema

HJ: Houve algum momento terrível enquanto criador? De si para si, de si para o outro; do eu e do não eu?

LCP: Os signos emaranhados não nos salvam do absurdo. E “o caos é a intuição fundamental do sublime”, como afirmou Schelling. Andamos nisto, e na aproximação ao sagrado, porque não nos podemos calar – Blanchot dixit, falando de Hölderlin.
Terrível é sermos para a morte. Considero quase leviana a pretensão de me julgar “criador”. Terrível é participar do crime. Viver depois dos Amigos mortos. Convocá-los ainda para o sonho que se perdeu, para as “lídimas intenções” tão ferozmente conspurcadas. Terrível é não honrarmos os nossos passos, delimitarmos territórios. Terrível é não sabermos que somos os outros em nós.
Um poema, que dediquei a Marco Lucchesi:

felizes os que viajam depois da noite
sem implorarem a fúria das manhãs
os que seguem inclinados
soltos os arreios invisíveis

os sem número
todas as selas constelações
geodésicos de nada entre abysmos
vácuos espessos

e se evolam
estrénuos sorvedores da matéria
que os inflou

muões pasmados
desenhando a forma dos cavalos
no início que arde

***

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