O palco ainda me assusta!

Horácio Guiamba, 40 anos de idade, faz parte do selecto grupo de actores que não precisa de provar mais nada a ninguém. Filho de Albertina Bata, comerciante, e de Bernardo Cuamba, mestre de obras, tornou-se Guiamba por erro de registo. Homem de trato e sorriso fáceis, encontrou no teatro um amor para a vida. Tentou seguir futebol, mas a mãe lhe negou o sonho, quis ser engenheiro agrónomo, o destino impediu-o. Hoje vive o teatro como uma extensão do seu corpo. E faz esta arte como profissional há 19 anos. Já esteve em inúmeras peças, é membro da Companhia de Teatro Gungu, tem colaborado constantemente com o Grupo Mahamba, fez parte dos “Madoda”. O seu rosto é uma constante em anúncios publicitários, faz teatro radiofónico e já actuou em alguns filmes, como é o caso de “Mabata Bata”, de Sol de Carvalho, e “Comboio de Sal e Acúcar”, de Licínio Azevedo.

Recentemente, vestiu a pele de Baltazar Fortuna, na peça “Chovem Amores na Rua do Matador”, papel que lhe custou noites de sono. Estamos sentados num dos compartimentos do Centro Cultural Universitário (CCU), da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), e Horácio disfarça a timidez que o caracteriza, espreita pela janela a beleza dos pingos de chuva que molham a cidade. Vezes sem conta dá um clique no ecrã do telemóvel, barra as chamadas e acaricia o cabelo. Estou diante de um homem dotado de um talento único e que sabe que o tem. Na conversa falámos do teatro, do humanista, da discriminação, da vida; Guiamba despe-se das inúmeras personagens, encarna o seu próprio eu e rebobina a memória: “vendi gelinhos para pagar a escola”.

NO TEATRO,

A MEMÓRIA É TRAIÇOEIRA

A primeira vez que vi Guiamba foi na peça “Culpado? Combati um bom Combate”. A violência estava lá. Na peça “Chovem Amores”, sua última, a violência teve terreno, também…

Este cruzamento é interessante. Nunca faria esta ligação. Mas estas coisas nos perseguem, as guerras, o amor, a violência. Nunca nos desfazemos dessas coisas. No “Incêndios” acontece o mesmo.

Estas e outras coisas. A discriminação, por exemplo, está sempre entre nós. Há uma negação pelo outro…

Gosto do termo diversidade. No dia que começarmos a fazer as mesmas coisas o mundo vai deixar de ter graça. Há exageros, não há dúvidas, mas não podemos ser iguais e temos de nos aceitar e saber viver dentro deste mosaico.

Mas, de certa forma, isto dificulta o dia-a-dia. Guiamba sabe, por exemplo, que criar cabelo é um problema na nossa sociedade. Este é um pequeno exemplo de negação…

Quando ia casar, veio uma tia de Xai-Xai que me mandou cortar cabelo. Não o fiz. Na cabeça dela não cabe que alguém vá casar com cabelo “despenteado”. Já senti essas dificuldades. Nós devemos estar livres, desde que estejamos conscientes das nossas escolhas. 

Ainda queremos definir a identidade das pessoas…

Infelizmente. Mas, à medida que vamos caminhando para velhos, mais lúcidos ficamos em relação a esta coisa de identidade e não colocamos muitas paredes, porque já sabemos que quando fazemos isso a identidade fica deficiente. E ela não quer isso. As pessoas devem estar livres para escolher.

Já agora, qual é a sua relação com o palco? Tenho a impressão que sempre fica demasiado assustado quando pisa aquele lugar…

Tenho muito respeito pelo palco. Muitas vezes dizemos que não é qualquer um que tem de subir ali. Ou tens de ter domínio sobre ele ou vai te engolir. Recordo-me da frase de um dramaturgo norte-americano que compara o palco com aquele fio que os equilibristas usam para atravessar o circo. Não é qualquer um que o atravessa. Acontece o mesmo com o palco, é responsabilidade colocar os pés lá. Então, o que me estás a perguntar é justo,  porque vou lá para ser visto por pessoas. É por isso que até hoje o palco ainda me assusta. Controlar este sentimento leva tempo. Mas fica sempre a ideia de já estou aqui, não tenho como recuar. Esta é a parte lixada do teatro. Não há que dizer ao público “desculpas, falhei, entrei um pouco nervoso e peço para recomeçar”. Basta te apresentares, a coisa já foi. O que tens de ter é técnica e experiência suficientes para controlar o nervosismo.

Já lhe deu uma “branca” durante um espectáculo?

Várias vezes. No dia que isso deixar de acontecer não seremos mais actores. E é bom que aconteça, o mau é quando não tens soluções. É por isso que dizemos que um actor com experiência comete erros e ninguém percebe. Mas há vezes que as coisas nos vencem e o espectador, que é muito inteligente, nota. É por isso que o processo de preparação tem de ser bem complexo.

Mas quando acontece, como gere esse conflito?

Não é fácil. O que deve ficar é que quem dá vida à personagem é o actor, sou eu quem controla tudo, tanto que devo estar dotado de ferramentas para saber contornar estas adversidades. Recorro sempre à técnica e experiência. Não é algo que tenha fórmula. Acontece no momento e tens de encontrar soluções.

Um processo que exige memorizar. Como é este exercício?

Há vários caminhos, mas é importante descobrir o que é favorável. Nos últimos tempos exploro a repetição comigo mesmo. O primeiro passo que me facilita é compreender a história e conhecer a personagem.

Espectáculo Chovem Amores. Fotografia de Júlio Marcos

O texto de “Chovem amores” é longo. Mais de uma hora no palco. Como fez isso?

É a primeira vez que tive muito texto. O Baltazar Fortuna, personagem que interpretava, é que carrega a história. Houve gente a me perguntar como consegui memorizar. Esta técnica de repetição funciona muito para mim. Mas há sempre algo que nos escapa, e estamos conscientes disto.

Nas vezes que é uma série, quando falha algo no primeiro espectáculo, tem a obrigação de rectificar no que segue?

Depende do tipo de falha, hás as que não se pode ignorar. Uma vez apresentámos o “Chovem Amores” para Mia e, no meio do palco, me deu uma “branca”. Simplesmente esqueci o texto. O autor estava ali, mas no fim ele disse que não se tinha apercebido. O nervosismo pode tomar conta de ti. E é normal te perderes. O perigo no teatro está no tentar recuperar o que já se perdeu. Mas quando falhas, o espectáculo não pára, por isso é preciso saber avançar e manter a firmeza para não criar histórias paralelas.

Algum ritual antes de ir ao palco?

O maior de todos é a concentração.

Um momento embaraçoso no palco?

São vários. Em 2011 fizemos “Yerma”, uma peça de Federico Garcia. A minha personagem morre no fim, afogada no rio por uma das suas mulheres. Já me tinham dito que a actriz que ia contracenar comigo era muito intensa. E o encenador disse que devia reclamar se sentisse que me estivesse a maltratar. Num dos espectáculos ela mergulha-me na água, mas nesse dia eu estava tão assustado pela forma como ela tinha encarnado a personagem. Ela mergulhou-me e não levou nem cinco segundos, eu saí da água. Para mim, ela estava possuída. O pior é que quando saí, ela insistiu em devolver-me ao rio, eu também a resistir. Mas no fim, percebi que ela estava a viver a personagem dela. Eu é que estava assustado e aquilo constrangeu-me.

VENDI GELINHOS

PARA PAGAR ESCOLA

Vem do bairro Bagamoio. Como foi a sua infância?

Acho que foi igual de todas as outras crianças. Joguei muito futebol e ter-me-ia tornado profissional se não tivesse ido ao teatro. Em casa levei muita porrada, porque abandonava a banca da minha mãe para ir jogar. Ela mandava-me ir abrir a banca, porque tinha de ir refazer o “stock”, voltava e descobria que não se tinha aberto banca nenhuma. 

E então desistiu…

A minha mãe sabia onde jogava e vinha me levar à palmadas. Esta perseguição era justa para ela, mas não para mim, porque eu queria jogar, mas ela queria que cumprisse outros deveres. Fui me afastando do futebol, mas já brincava de fazer teatro. Agora lembro-me de uma novela, “Sassaricando”, que tinha uma personagem chamada Bob Bacar que eu gostava  de imitar as coisas que fazia. E era uma personagem gay, é por isso que, às vezes, pareço uma coisa que nem sou e vou confundindo as pessoas. E é bom, o actor deve se parecer com muitas coisas.

Como era a vivência da família?

Muito humilde. Mas são daquelas coisas que nos empurram para acordarmos para a realidade. Os meus pais cedo disseram-me que precisava de fazer o meu próprio dinheiro para pagar as minhas fichas na escola. São coisas que causam dor quando somos crianças, mas era a realidade. Vendi gelinhos para suportar a minha escola. O negócio cresceu tanto que até contratei gente para trabalhar para mim, mas depois me aldrabaram e o negócio faliu. Hoje podemos olhar com muito orgulho e dizer que respeitamos o caminho. É como o teatro, vê-se o resultado, mas o processo interessa bastante. É como diz o nosso Hino: “Pedra a Pedra”. Nós crescemos muito com o processo, é assim também na vida.

Como reagiu a família quando se decidiu pelo teatro?

Houve resistência. Uma vez mais a minha mãe. No início ela nem era contra, até custeava as despesas, mas queria resultados imediatos. Fiquei muito tempo a ensaiar e sem resultado nenhum. Ela chegou a me dizer  para deixar. Mas já estava tão dentro que não tinha como recuar. E foi isto que me impulsionou a abrir o meu próprio negócio. Foi nos anos 1998 e 2002.

Foi em 2002 que entra na Gungu?

Foi em 2000. Este negócio era também para ter dinheiro de transporte para ir aos ensaios.

E a sua primeira peça foi “Querido, a nossa filha está grávida”…

Foi. Sofri muito para fazer esta peça. Éramos muitos e não era fácil te escolherem para seres parte do elenco. Ensaiei bastante, mas porque gostava, nunca desisti. Todos os meus amigos que entraram comigo desistiram, abraçaram outras coisas. Por isso sempre digo, paixão é tudo. Se não tens por alguma coisa, não vale a pena. É esta condição que colocamos aos estudantes da ECA. Perguntamos até que ponto a pessoa ama aquele trabalho. Sem amor não vale a pena. Há vezes que encontramos pais que dizem que devemos levar os filhos, porque fazem rir em casa. Mas fazer rir não é suficiente. Há muita gente com este dom de fazer rir, mas no palco a coisa é outra.

Consta que saiu do Gungu para fundar “Madoda”.

Não saí. Os meus colegas, sim. Formaram o grupo e convidaram-me. Fui ouvir o projecto deles e até era bom, mas não o suficiente para me fazer abandonar uma companhia. Além disso, o grupo nem tinha onde ensaiar. Então percebi que vontade de trabalhar havia, mas não havia condições.

Ainda mantém ligação com Gungu?

Nunca saí! 

E qual é a sua ligação com Mahamba?

Sou o tipo de actor que onde me chamam e me identifico, vou. Também não tenho exclusividade com ninguém. Com Mahamba foi a mesma coisa, eles chamaram-me, eu gostei das ideias deles e fui. O Dadivo já me conhecia da ECA e convidou-me. E nunca mais parou. Não sou membro de Mahamba, mas estou sempre lá.

Tem prazer em trabalhar com teatro recreativo?

Acredito no poder que estas ferramentas têm para o desenvolvimento da sociedade. E este teatro para o desenvolvimento é uma oportunidade que não há na sala convencional. Lá dialogámos com as pessoas.

UMA FAMA DOLOROSA

É conhecido por muitos. Quando anda na rua alguém deve gritar “está ali o Horácio”. Como é isto?

Não, Matsinhe, não sou esta pessoa conhecida. Há dias vi uma reportagem de Denzel Washinghton onde dizia que não era celebridade. Ele dizia: eu sou actor. Também me identifico com esta resposta. Mas é certo que encontramos pessoas que gostam do nosso trabalho, e ainda bem, porque é sinal de estarmos a fazer alguma coisa reconhecível. Mas não é algo que me mude, se me muda é no sentido de dar mais responsabilidade. As pessoas quando nos vêem, e têm a sua razão, criam uma imagem que não é real. Esta é a tal fama dolorosa e nós a carregamos, porque ela não é real. Nos outros países merecíamos outra coisa, e trabalhamos para tal, mas enquanto não se chega lá, temos de ir com muita cautela nesta coisa de ser muito conhecido. Porque depois, quando isto nos sobe à cabeça, tropeçamos.

E as amizades no meio disto?

Sou de muitos amigos. E ainda bem, felizmente não tenho tido problemas em gerir. Mas sinto que há alguns que se afastaram, ou o inverso. Mas a amizade não acabou. É por conta das nossas agendas.

ACTOR MULTIFACETADO

Quais são as dores de ser actor no nosso contexto?

Existem várias dores. Mas a maior é preparar um trabalho para depois não apresentar por falta de patrocínio. Isto dói muito para o actor.

Acha que o teatro moçambicano consegue traduzir as várias realidades do nosso país?

Ele tem força para traduzir. Mas faltam oportunidades. Precisamos de algo a mais para levar a força que os actores têm para o palco.

Fala-se de pouca gente a ir ao teatro…

Nos últimos dois anos temos a covid-19 para justificar. Mas as pessoas antes da pandemia iam. É responsabilidade dos grupos garantirem qualidade.

Actuou em alguns filmes. Como foi a experiência?

Foi mais do que esperado. Um desafio. Sempre quis estar na tela de cinema. A minha primeira foi  “Mabata Bata”. Tive dificuldades de todo o actor de teatro quando vai ao cinema. No teatro tudo é grande, no cinema não. A câmara está aqui perto, não precisa falar alto, gritava comigo o Sol de Carvalho. Mas tem sido uma experiência boa. Gostava de ter mais oportunidades que é para desenvolver a experiência com câmara.

PERGUNTAS CORRIDAS

Sente-se feliz com o seu trabalho?

Bastante. É verdade que não é só felicidade. Mas resistimos.

Qual é o seu maior sonho?

Sonho com um país com uma sala de teatro pelo menos a nível provincial. Este país tem bastante talento, mas fica a ideia de que tudo está em Maputo.

Vivemos uma correria. Ainda sobra tempo livre para curtir com a sua família?

Sobra, porque no nosso país não há muitas produções teatrais de grande envergadura e que ocupem o actor. Acabamos de fechar “Chovem Amores” e não sei quando é que terei outra deste nível. Noutras realidades, o ano começa e o actor já tem uma agenda anual preenchida. Nós estamos muito longe disto, mas temos vontade. E ela é a força motriz para o resto. Só que estas adversidades desmotivam, fazem com que alguns desistam e procurem outros caminhos para sobreviver. As pessoas têm família e precisam de ganhar alguma coisa para viver. Com uma produção por ano não há vida.

É a confirmação de que teatro não dá dinheiro…

Mas devia dar. Noutras realidades dá. É por isso que aqui é muito importante que não avances no dinheiro para fazer teatro. Ainda cais na frustração. Mas é preciso compreender que teatro é trabalho. No 1.º de Maio desfilamos com o slogan “Arte é trabalho”. Quando há um evento chamam um grupo cultural para ir animar. Não dizem que vai trabalhar. Isto temos de vencer.

Vai ao cinema?

Sim, amo cinema. Outra área que a nossa indústria precisa se pôr a pau.

Livro favorito?

“Amor nos Tempos de Cólera”, de Garcia Marques.

Um álbum favorito…

Estou a escutar Leonard Cohen.

Algum vício?

Outra vez fizeram-me essa pergunta e eu disse que era ler. Mas depois percebi que estava a mentir. Acho que o meu vício é me divertir e estar bem. Não resisto a um bom papo, ficar em casa e curtir a família.

Viagens que não consegue esquecer?

Na minha primeira viagem à Europa fui para a Itália. Foi em 2008. Estava tão inocente que quando me chamaram levei coisas que nenhuma pessoa normal leva. Levei manta para a Itália.  Pior que nos disseram que fazia muito frio, e nem voltei com a manta. Que vergonha esta viagem.

Prefere contracenar ou um monólogo?

As duas. Mas gosto de contracenar com bons actores. Sonho com Adelino Branquinho, Mário Mabjaia, Vasco Condo, Lucrécia Paco ou Ana Magaia…

A pandemia chegou com a palavra morte. Como ficou o seu estado de alma?

Fiquei muito abalado. As teorias apocalípticas eram muitas. As imagens que nos chegavam eram trágicas. E perguntava-me como seria aqui. Mas a nossa pobreza nos protegeu.

O mundo não vai acabar. Como vê o ser humano depois da pandemia?

Um ser humano atento não está parado. Está sempre a procurar soluções, a lutar para vencer. Ele luta para dominar o vírus. Para o futuro vejo este ser humano com ferramentas suficientes para se proteger.

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