O presente desafortunado de Baltazar acusa o passado

Há quem deixe com o tempo a missão de curar as feridas interiores. Há feridas na alma que jamais cicatrizam e a dor persegue o Homem. E de tempos em tempos, despropositadamente a dor surpreende a consciência e infecta todos os pensamentos gerando uma atmosfera escura, nostálgica (até do futuro).

Baltazar Fortuna (Horácio Guiamba), farto dessas dores – não há químico nem erva que resolva -, vê na morte a solução definitiva. Mas não é a sua morte, é a das três mulheres que amou e odiou. Derrotado de si próprio, resta-o acreditar que elas cravaram um anzol – desse passado que os une – na sua pele que o perfurou até a carne do espírito.

De chapéu elegante de seda, blazer amarelo, uma camisa vistosa, relógio e toda a quinquilharia da estirpe, Baltazar Fortuna é o protagonista da peça de teatro “Chovem amores na rua de matador”, que está em temporada este mês no Centro Cultural da Universidade Eduardo Mondlane (CCU – UEM).

Quando as cortinas baixam para este espectáculo, que resulta da encenação de Maria Clotilde e Vitor Gonçalves, é a representação de um texto original de Mia Couto – que o adaptou – e Eduardo Agualusa que a plateia vê. O título da peça é homónimo ao conto, extraído do livro “Terrorista elegante”, coassinado com os escritores referidos.

Desgostoso com o seu presente, Baltazar Fortuna tomou a estrada rumo a Xigovia, para enterrar o(s) seu(s) passado(s) a sete palmos, literalmente. É movido pela convicção de que assassinar as três mulheres com quem se envolvera em diferentes momentos dos seus 49 anos é a solução.

Escrevo-vos sobre um galã da town (urbano), bom de lábia, como se percebe nos longos monólogos em que, aliás, nos esclarece que sabe que está a ser visto por uma plateia.

Ao chegar a vila de Xigovia, terra dos prometidos assassinatos, dirige-se de imediato a residência de Mariana Chubichuba (Violeta Mbilane), depois da Judite Malimali (Angelina Chavango) e, por fim, Ermelinda Feitinha (Josefina Massango) e a sua filha (Helena Tembe). Em todas as casas – cujo cenário desenhado pelo arquitecto Évaro Abreu as representa com três portas e janelas no fundo do palco – amoleceu e falhou o seu plano.

Na sequência de cada encontro há um momento de monologo de cada uma das mulheres, nos quais elas reavivam lembranças que nos revelam o lado escuro e também encantador de Baltazar Fortuna. Embora o texto parta de um porto comum na arte, que é o amor, navega com humor, pelos territórios do aborto, do abandono, do jetssetismo e outras mazelas que configuram as nossas vivências de baixo do sol.

O elenco composto por actores experimentados e iniciantes, enfrentou um público em pleno CCU depois da sangria que foi a pandemia para este sector das Indústrias Culturais e Criativas cronicamente precário, que é o Teatro. Outra conversa. O essencial é que depois de vários meses sem contacto com o público, o grupo voltou aos palcos nesta peça, que é a primeira iniciativa do género da Fundação Fernando Leite Couto, que tem privilegiado o teatro na sua programação, como aliás comprova a sua agenda mensal e o anual Cenas Curtas.

Na flor do encanto a audiência batia palmas no decorrer da peça, sobretudo quando as mulheres deixavam o centro do palco para dar lugar a outras cenas. Esta atitude apesar de ser um retorno positivo sobre o que se acaba de ver, numa estreia pode desestabilizar os actores que sempre ensaiaram numa sala fechada, sem esse contacto com o público. O elenco contornou os aplausos.

Horácio Guiamba foi ao palco como que com o objectivo de confundir a voz do personagem do livro com a sua. Foi o dono de tudo e da circunstância, encarnando de tal modo que, alguém, ao meu lado que já leu o conto comentou: até parece que quando Agualusa e o Mia escreviam, pensaram nele para representar o texto em teatro.

A minha surpresa foi Violeta Mbilane, que nos transporta as suas dores de mulher abandonada pelo homem que amou, numa interpretação que apesar da falha, a dado momento, ao chamar Baltazar Fortuna quando deveria ser o seu falecido marido Hermelindo, teve uma exibição de realce, a esclarecer que há uma geração que quer continuar a trilhar o legado de uma Ana Magaia – que estava na plateia – ou Lucrécia Paco.

Josefina Massango e a sua capacidade de nos fazer confundir ela e a personagem, pela naturalização ou apropriação – seja como for – da mulher que representa. Um momento confuso é quando se levanta da cadeira de rodas e põe-se em pé, firme.

 Francisco Baloi, também ele actor e encenador – estudante da Escola de Comunicação e Arte da UEM – que vai dando os seus primeiros passos nos trabalhos de luz, foi conduzindo a plateia ao foco da cena e sem muito colorido na sua alternância conseguiu criar um ambiente emocional para a plateia.

Sara Machado fez os figurinos, Ademar Chauque, a coreografia. Pedro da Silva Pinto fez a sonoplastia com música de Shigeru Umebayashi. Clotilde Guirrugo e Pablo Ribeiro estão na Direcção de produção.

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