O Excedente Estético: a Readymadezação da «Nova Arte»

Por HARANI-MAHALAMBE

[Para o poeta russo Joseph Brodsky] há momentos em que, por meio de uma simples palavra, uma simples rima, o autor de um poema consegue se encontrar onde jamais ninguém esteve antes dele, mais longe, quem sabe, do que ele próprio desejaria ir. Aquele que escreve um poema o faz sobretudo porque escrever versos é um acelerador extraordinário da consciência, do pensamento, da compreensão do universo.
TEZZA, Cristóvão. Entre a prosa e a poesia; BAKHTIN e o FORMALISMO RUSSO, 2003.
Escrever bem não é só uma questão de «estilo»; significa também ter à disposição uma perspectiva ideológica capaz de penetrar até à realidade da experiência humana numa situação determinada.
EAGLETON, Terry. Marxismo e Crítica Literária, 1979.

Em Outubro de 1917 – ano derradeiro da primeira crise ideológica do capitalismo comummente conhecida como I G. Mundial – o proletariado russo, inspirado na doutrina marxista sob a direcção de Vladmir Lenine, lança uma ofensiva contra o capitalismo ocidental, exigindo maior justiça social, instituindo, por assim dizer, o primeiro regime socialista do mundo. Estabelece-se o Proletkult na Rússia pós-revolucionária, com o objectivo de criar uma arte puramente proletária depurada de influências burguesas; o apelo do poeta futurista Maiakovski à destruição de toda a arte do passado, sintetizado na palavra de ordem «queimem Rafael»; o decreto de 1928 do Comité Central do partido Bolchevique – que à posteriori combateriao academicismo poético exacerbado dos formalistas – nos termos do qual a literatura deveria servir os interesses do partido. Como corolário disto tudo, em 1934, num congresso bastante concorrido por todos escritores soviéticos – Estaline, depois de influenciar Máximo Gork, outrora defensor da autonomia ou liberdade da arte, foram ambos cabecilhas deste Grande Congresso – fundam a estética «realista socialista». Esta doutrina ensinava que era dever do escritor «dar um retrato verídico, histórico-concreto, da realidade no seu desenvolvimento revolucionário», tomando em conta «o problema da transformação ideológica e da educação dos trabalhadores no espírito do socialismo» – a literatura tinha que ser tendenciosa.[1] 

A estética soviética, que se insere no contexto vanguardista europeia, embora criticada pela sua natureza fotográfica da realidade, como fez o seu antecessor realismo e sucessor neo-realismo pelo seu carácter esclavagista, ao colocar a arte ao serviço partidário, encontra um sustentáculo nos debates de Platão e Aristóteles sobre a função da arte, para os quias (i) Platão olha para os objectos de arte como meras imitações da natureza e deturpadores da realidade do mundo, deseducando, com efeito, a polis (dissemelhança); (ii) Aristóteles olha para a arte como artifício que prepara o mundo para a vida em comunidade, despertando sentimentos comuns e universais (verossimilhança).

Assim, o apelo do poeta futurista Maiakovski à destruição de toda a arte do passado constitui uma denúncia da rotura com o esteticismo e academicismo tradicional posteriormente catalogado por R. Jackobson com a sua turma, que à luz da autonomia e liberdade da arte, instituiu-se uma arte que se descura do social; uma arte imaginária, que se diga também, “arte pela arte” cujo lema tem de apenas o ornamental. Aliás, Leyla Perrone-Moisés, ao endossar a função poética de R. Jackobson, olha-a como aquela palavra que, em vez de se dirigir para fora, para o mundo das referências (e das utilidades práticas), dirige-se para si mesma, para a exploração lúdica das suas próprias potencialidades.

À luz do exposto, às vanguardas do século XX é-se-lhes conferido aquilo que elas reivindicaram sempre para si, em oposição às estratificações literárias e filosóficas típicas do seculo XIX: o serem o conceito operacional que de facto opera; o serem uma acção que de facto age; o serem um programa que se objectiva; o serem uma teoria que, como tal, modifica as práticas.[2] Dito desta forma, a desvalorização barroca do mundo em favor do além, transforma-se na vanguarda, numa afirmação francamente entusiasta do mesmo mundo, embora uma análise primeira das técnicas artísticas nos permita verificar o carácter vacilante dessa afirmação, que é expressão de angústia perante uma técnica e uma estrutura social gravemente restritivas das possibilidades de acção dos indivíduos.[3] 

E cá entre nós os poetas da Náusea, enquanto consumidores do excedente estético – o neo-realismo dos poetas do prelúdio, incipiência, formação; do neo-realismo soviético da poesia antiestética da antologia da poesia de combate da década de 60 do século passado; da passividade da Geração de Charrua perante a emergência antropológica e filosófica; e toda uma gama das correntes literárias do passado – (i) é possível uma arte que inspirada nas correntes literárias do passado encontre um novo desdobramento em função do nosso contexto social e temporal?; (ii) uma arte que não só nos conecta  ao mistério profundo da existência, mas também se interrogue sobre o presente histórico subsequente sem com isso quebrar a categoria do belo poético?; (iii) uma arte de uma articulação coerente e completa da «visão do mundo», logo como criação das «estruturas mentais trans-individuais»?

Há essa coisa toda por burilar. Essa carência de esmero; a erosão estético-literária, ou até, como diria Dionísio Bahule o «défice epistémico» nos poetas pós-2000, talvez movidos pela ânsia de querer ser mais um entre tantos. Há essa incapacidade de «transfiguração do EU» que repousa naquilo que Bakhtin chamou de enfoque emotivo-volitivo – o exercício de se identificar com o outro que passa de, (i) identificar-me com o outro: devo experimentar (ver e conhecer) o que ele está experimentando, devo colocar-me em seu lugar, coincidir com ele; devo assumir o horizonte concreto desse outro tal como ele vive; (ii) e depois voltarmos a nós mesmos, recuperar o nosso próprio lugar fora daquele que sofre; (iii) relacionar o que se viveu ao outro – esta é a condição necessária de uma identificação de um conhecimento produtivo, tanto ético quanto estético. A actividade estética propriamente dita começa justamente quando estamos de volta a nós mesmos, quando estamos no nosso próprio lugar, fora da pessoa que sofre, quando damos forma e acabamento ao material recolhido mediante a nossa identificação com o outro, quando o completamos com o que é transcendente à consciência que a pessoa que sofre tem do mundo das coisas.[4]

Gosto do discernimento e esmero estético de P.P. Lopes, mas incomoda-me o seu distanciamento com o dado social; fascina-me a lucidez e responsabilidade da H. Joshua, de Jaime Munguambe e de M.P. Bonde. Mas me entristece e incomoda a opacidade estética e insuficiência epistémica de Sara Jona, Deusa de África e sua companhia – essa falta de amor e rigor com as palavras; o imediatismo verbal que repousa no uso da linguagem cotidiana. À este fenómeno patológico em que os poetas moçambicanos pós-2000 incorrem chamamos de readymadezação [da poesia], segundo a terminologia mais acertada de Anne Cauquelin – para quem não conta mais a habilidade e o estilo, apenas o signo, ou seja, um sistema de indicadores que delimitam a artisticidade de uma obra. Ela não consegue legitimar-se em si.[5] Aliás, um mestre, M. Bakhtin,

[…] O poeta deve compreender que a sua poesia tem culpa pela prosa trivial da vida, e é bom que o homem da vida saiba que a sua falta de exigência e a falta de seriedade das suas questões vitais respondem pela esterilidade da arte. O indivíduo deve tornar-se inteiramente responsável: todos os seus momentos devem não só estar lado a lado na série temporal de sua vida, mas também penetrar uns aos outros na unidade da culpa e da responsabilidade […] BAKHTIN, 2018

Quando Marcel Duchamp assina e manda à exposição uma Roda de Bicicleta (1917) e Caixa de Brilho (1964) de Andy Warhol configurando aquilo que D. Bahule chama de museificação do cotidiano, há duas interpretações que podem ser impressas (i) explícita – que denota a morte da transfiguração da arte, ao exigir que esses objectos sejam considerados de objectos de arte; (ii) implícita – que apela ao artista a não dar costas ao dado social, i.e, o artista enquanto filho social, padecente do flagelo social, não devia dar costas à realidade social circundante; desnuda-se que a escrita não é produto de uma mentalidade individual, mas sim colectiva ou trans-individual; olha-se assim à obra como «produto social».

Não estamos aqui a defender uma escrita fotográfica, mas sim uma escrita voltada ao social. Os poetas pós-2000, ao inspirarem-se à estética barroca devem fazê-lo com uma consciência artístico-social. Isto é, um equilíbrio entre a forma e o conteúdo.


[1] Para mais aprofundamento sobre a matéria, recomenda-se uma leitura cruzada entre EAGLETON, Terry. Marxismo e crítica literária, 1979; & BURGER, Peter. Teoria da Vanguarda, 1993  

[2] _____________ As vanguardas na poesia portuguesa do seculo vinte. Instituto de Cultura e Lingua Portuguesa. Biblioteca breve/volume 52, 1987

[3] BURGER, (1993:121)

[4] BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal, 1997

[5] BAHULE, Dionisio. O kitsch e o nomadismo estético: As aporias da nova arte, 2017

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