Victória com sabor a derrota

Que tempos são esses,
Quando falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?

Bertold Brecht

Um velho poeta se hospeda em um hotel à beira do rio. Sentindo a morte cada vez mais próxima, embora aparentemente saudável, convoca a presença dos dois filhos, com quem tem uma relação distante. Simultaneamente, após ser traída pelo parceiro, uma jovem se instala no mesmo local com uma amiga. Quando ele vê a jovem e a sua amiga, fica profundamente tocado.
O enredo acima é da longa-metragem “O HOTEL ÀS MARGENS DO RIO” (HOTEL BY THE RIVER), dirigida pelo cineasta sul-coreano Hong Sang-Soo. E assim desperta o meu interesse pelo cinema daquele país oriental, que até aquele episódio desconhecia. Estávamos em Novembro de 2018, no Festival de Cinema do Rio de Janeiro.
Prendeu-me a atenção o filme em preto e branco, no qual uma aparente simplicidade aeróbica de zooms dá luz a uma narrativa calcada em encontros, bebedeiras, refeições e divagações sobre os corredores, nem sempre iluminados ou com a luz falha, da vida. Esta, pelo que se percebe nos filmes “Noite e Dia” (2008), Hahaha (2010) e “Certo Agora, Errado Antes” (2015), assinados por Hong Sang-Soo, é uma marca já registada no seu ADN.
Este realizador, assim como Park Chan-wook, Na Hong-jin, Lee Chang-dong – presenças regulares e significativas em festivais importantes como o de Cannes ou Berlinale, arrecadando Óscares e Palmas de ouro desde os finais da década 90 do século passado – têm estado a introduzir outros tipos de narrativas, de discurso e imaginários no cinema.

Embora, em muitos casos, não causem estrondos de sucesso no ocidente e seus followers, lideram as bilheteiras na Correria do Sul.

O virar da página.

Com “Gisaengchung” (Parasitas), dirigido por Bong Joon-ho, que levou o Palma de Ouro em 2019 e em 2020 uns tantos Óscares, as atenções do “pop” – ou mainstream, tanto faz – viraram para uma produção “cult” que até aí era consumida, essencialmente, fora da Ásia, por cinéfilos.
As premiações confirmaram a relevância do trabalho de Bong Joon-ho que chega às salas da tela grande – relactivamente, no meu grupo de amigos, vimos no laptop e na Tv, com um flash – pela primeira vez com “Salinui chueok” (Barking Dogs Never Bite), em 2000, segue depois com “Memórias de Um Assassino” (2003), “Gwoemul” (O Hospedeiro/A caricatura), 2006, e as produções não param de surgir ano após ano.

Nesse percurso vai consolidando o seu trabalho sob os signos e significantes, ironia, acidez, crítica sociocultural, política tendente para a esquerda, e planos de suspense, elementos que já constituem a infraestrutura do seu cinema.
Na longa-metragem de Bong Joon-ho, disponível na Netflix (Okja, 2017), uma criatura gigante – um porco mutante – que Mikha (Ahn Seo-hyun), adolescente agricultora que a criou no alto das montanhas no interior da Correia do Sul, deu o nome de Okja. Mikha vive no isolamento com o avô desde que ficou órfã de pai e mãe. O porco é a sua fiel companheira, passam o dia juntos nos verdes da floresta, a alimentar-se de frutos silvestres, peixes nos riachos, cascatas e lagos que a natureza lhes pôs a disposição.
O destino de Okja já estava traçado havia 10 anos, desde que foi gerado. O porco que chegou as montanhas recém-nascido tem de voltar a Nova York para seguir aos talhos e nutrir os cardápios de fast food norte-americana.
Mikha parace não saber que outros 25 foram distribuídos por vários países, pela Mirando, uma grande empresa do ramo de venda de carne para supermercados, em quantidades industriais, cuja CEO é Lucy Mirando (Tilda Swinton).
Na apresentação amplamente mediatizada deste novo “produto” velado, ainda no início da pelicula, como uma forma de gerar uma nova espécie para equilibrar o ecossistema que vai se ressentindo de animais em extinção. Os animais estão a ser envidos para serem criados por agricultores de vários lugares e assim crescer na cultura do lugar. Este foi o caminho encontrado para escapar de ambientalistas e custos de produção nos Estados Unidos, através de mão de obra mais barata. O objectivo era introduzir porcos mutantes no mercado, cuja mutação consiste em dar-lhes mais volume, mais peso…enfim, “mais carne.”
Volvida uma década, Mikha desenvolveu uma relação de afecto com Okja. A Mirando, empresa proprietária do “super porco”, a toma de volta. Aqui a crise se instala.
Desprotegida, com algumas moedas da sua poupança, que guardava num cofre com formato de porco, contra a vontade do avô Mikha, desce para Seul, para recuperar a sua companheira. É, ao chegar, confrontada com a indiferença dos funcionários da empresa e acaba envolvida numa missão de resgate com um grupo de activistas ambientais que pretendem denunciar o que está por trás da operação anunciada como um manifesto de amor pelos animais.
Já neste filme, anterior ao “Parasitas” (2019), encontrávamos a caricatura de personagens do capitalismo, como, por exemplo, o apresentador de televisão que ganha seguidores por ser excêntrico e fingir que gosta de animais. Da empresária que se safa dos sarilhos que lhe surgem como uma boa estratégia de comunicação. E, se na longa “The Host” (O hospedeiro/ A Criatura) a figura animal de tamanho colossal é um monstro, neste é um porco dócil.
Manipulações da media – ainda mais eficiente com a nova media -, gestão de crise e o capital, no fim vence. Mikha retorna com Okja para as montanhas. Deixando para trás outros porcos, na fila de espera do abate. A sua conquista foi em troca de uma estatueta de ouro puro, maciço pelo animal. Os ambientalistas perdem, não obstante a denúncia.
Dois últimos detalhes:

  1. Para Lucy Mirando a adolescente Mikha e Okja são a mesma coisa: lucro.
  2. Na Correia do Sul, sonhar com Porcos, traz fortuna, traz sorte.

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