Paulina, minha velhota.

 Escritor por Dionísio BAHULE*

São poucos – aqueles de quem posso chamar assim. Uma vez – rimo-nos. Lembro-me! Descíamos a ruela escondida para quem segue encostado o passeio da Karl Marx olhando com ligeireza turva a 25 de Setembro. Até aí – já havíamos percorrido a contínua interrupção do semáforo a transitar a narrativização caótica da hora final do expediente. Curioso – é que eu ainda amo aquela gargalhada emoldurada na fumaça do cigarro a definhar na ponta dos dedos – por um motivo digno para rejeitá-la à sepultura. Pelo menos isso. Depois do fim – espero ainda continuar a partilhar contigo – os malefícios e os indigestos da vida. Não tinha nada de clichés viciados e muito menos – coisas de um iniciante consumido pela reacção impulsiva de inclinar uma historieta. Deixo isso. Essas coisas todas de análises amadurecidas para outros. Para um biógrafo sério, talvez. Para mim – continuo pensando que ainda não te absorveram. Uns rotulam-te feminista porque leram algumas coisas no Balada, no Niketche oun’ O Sétimo Juramento onde a mecânica do protagonismo é fixado na interrogativa da mulher. Só por isso – agora chamam-te feminista. E outros… de tantas outras nomenclaturas. Estão deteriorados, minha velha. Não te preocupes! Quando começarem a escalar a montanha sob os mesmos moldes a que Sísifo foi submetido; com rosto crispado; face colada à pedra a percorrer com timidez sofrida o ombro já cansado – compreenderão a tua luta. Tocarão os teus livros para cheirar em primeiro os segredos da simbologia e, depois, – invadir as equações fragmentadas da nossa história. Uma vez – numa conferência de 1995, em Lovaina – Bélgica, Jacques Derrida – um selecto senhor da Paris 8, disse alguma coisa como: «a literatura deve tudo sofrer ou suportar, padecer de tudo». O que seria isso de padecer e suportar tudo para além desta prática de olharmos o acto verbal como vulnerabilidade do corpo humana ao mundo? Como esse exercício certo de fatigar primeiro o cogito para depois se instalar no concrecto; voltar-se para as coisas-elas; nesse lugar de forja e de peregrinação ao que um dia Appiah deu o nome de sinceridade. Sabe, Paulina! A assimilação tem seus vícios. Aliás: trouxe grandes malefícios para o pensamento. Aqueles que também hoje pensam que te estão a estudar – não sabem quase nada. É possível que um dia; não sei quando. Curioso! É mesmo isso: é que eu nunca li em nenhuma crítica, por exemplo de Niketche. Alguém apontar a travessia simbólica da morte da irmã da Rami pelo marido. Comentamos isso um dia com os olhos a espantarem o tendão absorto de um adeus a propender doentiamente entre a fumaça do tabaco e o copo de cerveja; de quanto em vez – sorrio contigo as desgraças do tempo; da insuficiência da crítica; dos estudos. Principalmente – com o novo banho de vozes que vem de fora com petulância de academia. Como permutar Clemente e David – para explicar os penosos tempos da revolução pós-independência no Sétimo Juramento? Nunca vi nada disso. Senão uma decadente perespectiva de forçar um conteúdo de análise distante do locus próprio da lavra. Minha velha, eu costumo dizer as pessoas que te devem procurar – principalmente, depois da «Geração 56». Não da Charrua dos anos 80. Mas daquela jovem-vanguarda dos gloriosos anos da Presence Africaine. É aqui onde começa a tua luta. Sem tirar, obviamente, o mérito da geração dos anos 80 que fixou seu edifício no binário pendular entre a história e a fotografia dos difíceis tempos da revolução. É no exercício de regressar ao ethos – ao nosso lugar; ao habitat comum para questionar e levar o voo da especulação. Mas, como um dia disseste: «os meus, os que ainda padecem; aqueles que levam consigo os restos de uma dominação colonial – chamam-me a Senhora que passa a vida reviver múmias. Mas digam-me vocês – há pecado em eu falar das coisas do meu povo?» Isto custou-te o rótulo de ser aquela que assalta a Instituição Literária. As razões são várias, mas agradam-me aqui duas. (I): por teres sido a primeira mulher negra no sentido de pigmentação de pele a escrever um Romance – Balada de Amor ao Vento – que é a coroação de um fabulário nativista dentro de uma tessitura verbal ainda dominada por coágulos de um paternalismo colonial; (II): por apresentar um estética da sinceridade – alguma coisa como – aquilo que encontra seu lugar de existir – na circunstância como totalidade do fazer artístico. Velha, como sempre dizes repetindo teu velho amigo, Uanhenga Xitu: a vida é um peixe. Tire os espinhos e joga fora.

Chiango – Maputo, 13 de Abril de 2021

*Dionísio BAHULE. É docente na Universidade Pedagógica de Maputo – Faculdade de Ciências da Linguagem, Comunicação e Artes. É Filósofo, Crítico de Arte, Músico, Actor.

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