“Wansati” quase lá, perto da Rhodália

A pessoa que escreve sobre a música acaba por falar da música tal como a sente”

– David Rodrigues –

Perplexo, desci para a Rua Joe Slovo já com o título escrito na Av. Samora Machel, deixando para trás o Centro Cultural Franco-Moçambicano. Habitualmente o título é o meu maior dilema. Mas aquele era cristalino. Foi em 2016/17. O título era: “Um fenómeno chamado Rhodália Silvestre”. Nas escadas do “Notícias”, jornal para o qual escrevia na altura, ocorreu-me outro: “Uma descoberta: Rhodália Silvestre”. Mas era pretensioso demais para ser dito por um mero jornalista na flor do encanto. Ao chegar à Redacção partilhei o entusiasmo com o meu editor de então, Francisco Manjate.

– Olha, Chico, ouvi uma voz que não é só bonita, triste, sofrida mas meiga, sincera e uma cena toda espiritual que remete a ancestralidade africana, uma conversa com as nossas raízes, sem no entanto perder o “Q” da contemporaneidade. Aliás, a sua intervenção no Festival Raiz é uma mostra dessa busca pela transcendência a partir do nosso chão.

No concerto do “Franco” repetiu-se o choque que me causou a versão live de “Lovin’You” interpretada por Minnie Ripperton, em 1974. Quando vi o vídeo no YouTube aquelas curvas que ela fazia, enfim…outra conversa de arrepiar. Eu vi aquilo acontecer ali no “Franco”. Eu vi Rhodália.

O editor Francisco Manjate, com as lentes que o tempo afinou, lapidou o encanto com a prudência que a maturidade sugere. Perdi o título. Mas não perdi os rastos. As aparições ao vivo de Rhodalia só confirmaram, ela tem uma cena só dela. E em 2020 chegou-nos “Wansati”, seu ansiado álbum de estreia em meio ao turbilhão da pandemia. Seu sonho era ter o disco para poder participar em festivais internacionais que já a convidavam, entretanto não avançavam por esse vazio.

Talhada no blues e jazz, descoberta por João Paulo no Gil Vicente, com quem fez duetos entre 2005 e 2009, acompanhados pela banda Os monstros, nas Noites do Blues, às quartas e Jam sessions.  Rhodália revelou-me, numa entrevista, entretanto, que esses não são os géneros que mais ouve. Ouve mais reggae.

Compositora desde a infância, levava, suponho, as peças para o pai Faustino Chirute, maestro – fundador do Majescoral -, ver. E nesse vai e vem, Rhodália parece ter desenvolvido com a música uma espécie de transcendência para um refúgio. Para encontrar um outro lugar.

A solo, transcende a olhos vistos em palcos importantes desde 2016. Uma intérprete nas aparições regulares no Centro Cultural Franco-Moçambicano desde a Festa da Música desse ano, Festival Mafalala (2016). Quando conquista o prémio de Melhor voz do Ngoma Moçambique (2018), depois de no ano anterior ter sido Revelação no mesmo certame, apenas confirmava-se o evidente. Um álbum foi-se tornando incontornável. As performances de Rodhália ao vivo são um ritual.

Esta compositora e intérprete que integra o trio Rox Mazito ao lado de Xixel Langa e Onésia Muholove – outras divas – estreia seguindo o destino que foi traçando ao longo do seu percurso, moldados pela, entre outros, experiência da cena cultural de Cape Town, onde residiu. É pelas vias do afro-jazz, afro-fusion que nos c(o)anta estórias do quotidiano popular numa linguagem poética.

A sua vida sofrida desde que se tornou órfã ainda na adolescência é uma experiência presente nas imagens (signos) e no imaginário que explora. “Ndhlala ya Lirhandzu”, por exemplo, é sobre falta de amor. O sujeito poético está a espera doutro que o complete. E “Ndhlala” (traduzido do XiRonga é fome) é esta metáfora que representa, neste caso, uma das maiores dores que o sujeito poético (compositor) conhece e nele aplica a figura de estilo.

“Tiya”, tema que abre o álbum, já vem com essa ideia de superação, um convite a manter o espírito combativo perante a vida e as suas circunstâncias. Rodhália está a dizer a quem está num vão de um escuro que a luz aparecerá de algum lado, desde que não vergue.

A poeta chora contra a pobreza e pensa a precariedade do homem Negro em “Akolua”. Se esforça para, na escuridão, iluminar esta esperança: a fragilidade é apenas uma circunstância momentânea.

“Wansati” é um álbum cuja curadoria optou por explorar uma estética comum e não surpreende, não inova. A produção ou o trabalho em estúdio não possibilitou libertar a artista. Talvez o Sacre, confiante no talento da intérprete, apenas a deixou gravar. Tal como na Literatura em que o escritor submete um original a uma Editora e cabe ao editor da mesma conduzir o autor lapidar o texto até se chegar ao melhor livro possível, a missão do produtor tem de ser a mesma. Se a obra é frágil, o produtor tem quota culpa.

Em “Wansati”, música que dá título ao álbum, estamos mais próximos do potencial mais caro de Rodhalia. Num artigo publicado na “Carta”, Alexandre Chaúque descreve que essa “música pega na mulher por inteiro e transforma-a na ferramenta da vida”. E Rodhália representa essa mulher africana, do roots – como não deixam mentir as dreadlocks. Nesse tema como igualmente se percebe em “Ndhlala ya Lirhandzu”, aquela evolução aparentemente inocente que no ponto alto parece um vulcão em erupção.

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