Nick do Rosário estreia em livro com “Gaveta de cinzas: solilóquios”

“Gaveta de cinzas: solilóquios” é o livro de estreia de Nick do Rosário. Esta obra sai sob chancela da Gala Gala edições. Com uma poesia clarividente, límpida e milimétrica, do Rosário faz uma incursão ora pelo universo poético, num exercício metapoético, ora no seu próprio mundo lírico, em três grandes momentos, “A palavra nasce”, “O verso acontece” e “A poesia acontece”.

Para o professor Demétrio Alves Paz, especialista de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Federal da Fronteira Sul (Brasil), está-se defronte de “uma obra versátil e potente. Uma nova voz poética que surge em Moçambique, em busca de uma poética própria e autêntica”. Na sequência segue o texto de apresentação do livro.

Escrito por Demétrio Alves Paz[i]

O livro de poesias de Nick do Rosário, Gaveta de cinzas: solilóquios, divide-se em três partes e tem 44 poemas. Na primeira, “a palavra nasce”, temos 14 poemas. A palavra não nasce do além. Ela tem não somente uma origem como também uma continuação. Assim, na primeira parte há poemas dedicados aos familiares: avó, mãe, pai e filha. Todos eles simbolizam as duas pontas da vida: o nascimento e a continuidade.

O nascimento é doloroso e, ao mesmo tempo, é um milagre. Preencher o branco da página é uma espécie de parto, ainda que intelectual. Nessa gestação de pensamentos e sentimentos, o verso ganha forma aos poucos. Do mesmo modo que, no nascimento, há ancestrais. Contudo, essa ancestralidade é também nossa (dos leitores): a avó, a mãe e o pai evocados remetem inadvertidamente aos nossos quando lemos, de forma que nada é gratuito ou fora de foco, o pessoal universaliza-se e comunica-se com o leitor.

Não é uma questão de buscar na biografia do autor elementos para a análise, mas perceber o vínculo afetivo com a família nas dedicatórias. Os poemas têm vida própria. O texto, depois de escrito e publicado, pertence ao leitor. Desse momento em diante, é aquilo que ele nos comunica o que realmente importa.

Em um dos poemas dessa primeira parte, há o verso: “a vontade de descobrir o corpo do poema”. Esse desejo não é pela forma, aquela fixa, muitas vezes estéril, que disfarça bem aquele que não tem conteúdo, que não sabe o que nem como dizer. O corpo, ao longo da obra, é um resgate ancestral, pois passa não só por gerações, mas também permeia o ser que se transforma por meio da leitura.

Nick do Rosário

Há uma série de palavras-chave nos poemas: cidade, corpo, infância, lembrança, memória, mundo, noite, silêncio, sonho e tempo. Em alguns poemas, o silêncio é uma forma de vocalizar o que não foi ou pôde ser dito, mas em outros é um indício de revelação. No intervalo do tempo que passa cabe muita coisa como em: “Tic-/ o relógio ressoa/ teu corpo/ lua morta/ a poesia/ -Tac”. A cidade é tanto o lugar da ordem como do caos. A infância mistura-se entre memórias, lembranças e sonhos. A noite é o momento em que o mundo se revela plenamente. O eu-lírico, por meio de seus solilóquios, expressa a sua (in)consciência do que é fazer poesia: um trabalho de elaboração da, na e pela linguagem. 

Na segunda parte, “O verso acontece”, há 11 poemas, incluindo o que dá título ao livro. Temos aqui o acontecimento, isto é, o desenvolvimento, o crescimento. Todos os poemas têm título, o que não ocorreu anteriormente. Se antes, tínhamos as origens e o que se ligava a ela, agora temos uma espécie de amadurecimento. No poema que abre essa seção, “O silêncio queima a madrugada”, o corpo é tanto a forma (poesia) como a matéria. Não há, ao longo da obra, um corpo sensual ou sedutor, surge um corpo em formação, sem fixidez, sem uma forma delineada, de modo que esse corpo (poesia) está acontecendo. O poema que dá título ao livro, “Gaveta de cinzas”, é breve e revelador: “E há vida/ no meio da palha.” A gaveta é um lugar para guardar, armazenar. Lá, a alegria é procurada, mas é a vida o que se encontra. As cinzas do título podem ser a memória, o que passou, o que se viveu: a vida que emana dessa busca na gaveta.  Na terceira, “A poesia acontece”, há 19 poemas. Numa espécie de desenvolvimento gradual, a poesia ganha corpo: a palavra nasce, o verso acontece e, finalizando, a poesia acontece. Aos poucos, ocorre o surgimento de uma poética pessoal, tal como se fosse um aprendizado desse corpo (poesia), lidando com a gaveta (o local de armazenamento) e as cinzas (a memória, as lembranças) que ela contém. A soma de tudo isso é uma obra versátil e potente. Uma nova voz poética que surge em Moçambique, em busca uma poética própria e autêntica. Em meio ao caos que vivemos atualmente, ler Gaveta de cinzas: solilóquios é, como lemos no poema que abre o livro: “a vida a pulsar”.


[i] Professor Associado de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) Cerro Largo – RS.

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