Itinerários do espanto

Foi com espanto que soube que Maquiavel e Voltaire escreveram prosa de ficção. Ambos possuem colectâneas de contos e novelas. A razão da minha admiração é ter crescido os conhecendo essencialmente como filósofos. O primeiro pela República e o segundo pelo Tratado sobre a Tolerância. É certo que era gente preocupada com o status quo mas não os via a fazer literatura.

A escrita literária, sendo um registo que não dá respostas imediatas (se é que dá alguma), é o universo de um pensamento de grandes propósitos não anunciados. Sai a rua a dizer que é apenas estética. Mas não é verdade.

Outro dia estava a ler 1984 de Orwell, romance distópico que tem no Winston Smith um dos protagonistas cuja função, no essencial é fabricar passados. Ou melhor, actualizar os passados. Então, se este escritor do século XX usou-se da ficção para nos alertar sobre o risco do totalitarismo, deixa de ser absurdo que Maquiavel e Voltaire o tenham feito.

Então, a semelhança deste clássico de Orwell, que tem na política o objecto, Lineu poeta e filósofo entra na prosa através de uma Crónica que tem a pretensão de igualmente questionar e denunciar os detentores do poder público.

Entre outras questões, Nelson Lineu pretende provocar uma reflexão sobre a forma como os regimes se auto-legitimam. Na crónica ESPECIALISTAS E ANALISTAS (p.25) enquanto aguarda a reparação da sua viatura, próximo do posto de trabalho, João finalmente constata que os especialistas – alguns deles tudologos -, regularmente convidados para a televisão e com espaços nos jornais, abordam vários assuntos e ignoram o que pesa no quotidiano do cidadão comum. É como quem cogita a hipóteses dessas figuras estarem ali para distribuir ilusões. Estão ali a projectar-se a (des) conversar sobre o que realmente interessa.

“João estava convicto de que, se fosse chamado um especialista para comentar sobre a relação 26 Solavancos-transporte no país, teria de ser ele. Desanimou. Para si, quem aparece quase sempre nessas ocasiões são os analistas e especialistas sinuosamente ligados a um partido político ou pessoas com a devida formação académica” (p.25).

Lineu entra para a literatura pela porta da poesia, com o livro CADA UM EM MIM, em 2014, anos depois saca da cartola, outra obra no mesmo género literário com ASAS DA ÁGUA, publicado em 2019. Ambas obras estão compostas por poemas curtos, porém densos em termos do trabalho da palavra, dos modos de a esculpir, de as dar forma, das imagens que dai resultam. E, igualmente, pela dimensão humana que transbordam nestes textos.

Esta casa, da crónica, tal qual Istambul dividida entre a Europa e a Asia, tem uma parte no jornalismo e a outra na literatura. Diria até, sem pensar no New Jornalism – tendo em conta o que a nossa imprensa escrita escreve – que é o que sobrou da literatura no jornalismo. Alguém, insistente, poderá questionar: e a reportagem? Como tinha dito antes, digo isto levando em consideração o que se escreve na nossa imprensa (outra conversa).

Sendo então uma fusão do jornalismo que se vangloria veículo da verdade objetiva e da literatura que é, digamos, a tribuna da mentira autorizada ou como defendeu Aristóteles para trazer a arte de volta para a Polis – que tinha sido questionada no diálogo com Ion e rechaçada na República, por Platão – a arte é o que poderia ter sido. Há quem a defenda como a verdade. Jacques Rancière, por exemplo, no livro PARTILHA DO SENSÍVEL, a dado ponto do argumento, assume a arte como a coreografia da sociedade.

Então, através de estórias corriqueiras, inventadas ou ficcionadas pelo autor, seguimos neste PASSO CERTO NO CAMINHO ERRADO por percalços rotineiros do quotidiano sempre com um ou dois ou mais personagens a encarar a realidade como uma espécie de tabuleiro de xadrez, no qual o Rei e a Rainha, protegidos pelas muralhas do palácio e defendidos pela retorica do Bispo que vem a Cavalo, atacam os peões enquanto bebem vinho, no interior do Castelo. Não são narrativas palacianas, mas reflecte os resultados da atitude de quem ocupa o palácio. Acho que o contexto de Nicolau Romanov, o último Czar, consegue ser um bom exemplo da forma como o autor destas crónicas (posicionado com a plebe – o proletariado, no caso) olha para o líder máximo.

Este livro resulta do “desafio de criar uma coluna na Revista Literatas – na altura, Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona – a que chamei O PASSO CERTO NO CAMINHO ERRADO, na qual publicava textos de opinião e crónicas”, esclarece o autor, numa nota.

Embora não seja um autor que surpreende como, como o faz na poesia, é notável uma preocupação com o estado de coisas, pensando a mudança a partir do cidadão comum. É o que nos indica a mulher da crónica FINALMENTE, A RESPOSTA DA PRODUTIVIDADE (p. 21), que já descrente do sistema, informa aos homens associados a ele que:

“Eu não posso chegar para vocês e entregar-me simplesmente. Além disso, não estou tão carente assim, tenho o meu orgulho feminino; pois, pelo vosso perfil, não me darão valor mais tarde.” (p.21)

Depois de ter questionado:  

“Senão fosse o efeito das manifestações, quando é que viriam a público reconhecer a vossa duvidosa virilidade?” (p.22).

Com narradores, as vezes ingênuos sem propósito de tal, a quem falta humor, referências e imaginação, este livro não deixa de ser uma promessa do exímio poeta tornar-se um cronista de verve.

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top