A nostalgia como tonalidade afectiva poética em O silêncio da pele de Otildo J. Guido

Daúde Amade[1]

“É preciso que examinemos de mais perto como se apresentam, na geometria do sonho, as casas do  passado, as casas em que vamos reencontrar, em nossos devaneios, a intimidade do passado. É preciso estudar constantemente como a suave matéria da  intimidade encontra, através da casa, sua forma, a forma que possuía quando encerrava um calor primeiro”.Gaston Bachelard, A poética do espaço

1. Há modos práticos de fazer a experiência da existência passada revitalizar-se que não requer manuais de história, pois é um evento íntimo, singular e subjectivo. Otildo Guido[2] é quem nos dá luz sobre como percorrer a nossa experiência da existência em dados poemas de seu livro de estreia, o livro vencedor do prémio Fernando Leite Couto de 2019, O silêncio da pele (2020). E para tal processo bastam duas coisas: a memória, como recinto em que adormecem incautos os momentos sob o signo da nostalgia e a poesia, como a faculdade de analisar a nós mesmos. Porque é exercendo a invocação da memória, uma atitude experimental de quem convoca ao presente o passado ou o futuro para analisá-los, que Guido consegue lembrar-nos, na última estrofe do poema O sobressalto da memória (p.17), que:

…no desatinar da memória:

lembrar é tradicionalizar.

O que seria tradicionalizar? Antes mesmo à essa resposta, coloca-se diante de nós a seguinte questão: o que é tradição? A tradição é vista como “…cadeia sagrada que liga os Homens ao passado, conserva e transmite tudo que foi feito pelos que os precederam” (Helder apud Abbagnano, 2007, p.967). Como se depreende, há um ar de nostalgia que nos arrasta para o tradicional, na necessidade de conservar e transmitir para a posteridade o nosso passado. Tradicionalizar é esse fenómeno de assumir o passado como presente e transmiti-lo como experiência vinculada à quotidianidade e familiaridade. O tradicional move-se na nostalgia, é repleto de resquícios do passado que fazem com que ele se mantenha invicto a revogar o presente mais actual por um presente que já passou e é apenas actualizado em memória. É assim n’O silêncio da pele, há uma manifestação contestatória do presente actual e convocação do presente ora passado. Toda essa manifestação sente-se no tom acre com que se invoca a saudade, a nostalgia e a memória, como lugares em que estão as experiências de vida.

O poema Búzio e lágrima (p.35) coloca o problema:

É vã a certeza da nostalgia:

quando a gente não chora

produz um rio no interior

que nos inunda lentamente

e quando a gente chora

produz um rio no exterior

que afoga o largo afeto

que temos pela existência.

Para Guido, já que não basta o solo íntimo para nele correr o rio de lágrimas nascidas da nostalgia, a alternativa é produzir um rio no exterior, no qual a poesia que habita na lágrima transcorra sobre a existência. Esse rio é o papel, na medida em que a ideia de memória e a ideia de choro são ambas elementos reais para o produto estético aqui requerido. É necessário começar por entrar no divã da memória e, de súbito, saltar para a velocidade com que se move o choro, e depois massajar com a poesia:

a ferida imperfeita

que nasce nos silêncios

das saudades e mágoas (p.52).

Assim expõe a segunda estrofe do poema Remédio. Por isso mesmo não é indigna a conclusão de que a memória, espaço de nostalgia, é o habitat restante mediante o fenómeno dos dias que passam diante de nós que ainda restamos apoucados a cada quê de lágrimas de saudade das coisas que permanecem finitas no agora.

A nostalgia é, nos textos de Guido, recorrente, presente, lugar-comum, quase a casa-do-ser. Porém é um pouco mais do que isso. É, decerto, um locus poético assumido, uma modalidade perceptiva e interactiva com as afeições. O silêncio da pele é a expressividade dos mundos-de-vida, uma assumpção da escrita como ofício etnográfico e antropológico; uma ida aos campos sempre férteis para a poética: o amor, a dor, a infância, a morte, o espaço de co-vivências, a inconstância dos momentos de eudaimonia; mas este manual é, acima de tudo, apresentação de uma poesia que se pretende oficinal mediante o próprio acto poético. Onde a nostalgia aparece como a força motriz para o verso, porque, diz-nos o poeta em Genealogia (p.51), na estrofe de abertura:

Num só pedaço de palavra

se resume o mundo:

a saudade e o pranto,

a palavra e a caligrafia.

E surge o exemplo da saudade e o pranto como pedaços de palavras nas quais se faz o mundo ganhar sentido quando nos lembramos dos momentos idos e que uma inventiva felicidade nascida de uma outra felicidade do antes vivido, lágrimas jorram porque sorrir ou chorar, no fundo, é a mesma coisa, ou então:

às vezes sorrir

é a mais pura forma de chorar (p.51).

Consideraremos, portanto, a hipótese de que a nostalgia nos aparece como tonalidade afectiva poética de experienciar o mundo, uma forma de escrita (a que poderemos associar, numa transição gradual, como forma-de-vida). É isso que justifica que tentemos analisar nas suas várias facetas poéticas a cena da nostalgia n’O silêncio da pele, na medida em que ela nos dá abertura aos bastidores de uma poética do desejo de voltar a casa onde a vida acontece.

No poema Eterno vivo (p.72), na terceira estrofe, Guido fala-nos da nostalgia como algo que dói desgostosamente e que desfigura a real noção de presença:

és

a nostalgia que me dói

a incongruência da mágoa:

se te tenho, não sei te ver

se te vejo, não sei te ter

O que então ocorre é como se o próprio processo de viver se estendesse ao longo do sentimento de perda, da busca pelo perdido, da tentativa de fuga da dor pelo perdido. E poderíamos ficar nessa concepção particulamente negativa que nos é fornecida pela palavra “incongruência”. Mas Guido rapidamente a restitui: esta “incongruência”  não será apenas um modo de intelecção porque até é mais do que isso: é uma visão-de-mundo dentro de sua poesia. É assim porque, ainda que a nostalgia desate dores, dores incongruentes, a presença teimará em fazer-se presente, porque o ente que é memorado é aludido deste modo, conforme a estrofe final de Eterno vivo:

és o eterno vivo

que só morre

depois do meu amor perpétuo.

Por conseguinte, uma compreensão sem preconceitos da nostalgia arrasta-nos a uma determinada interpretação da vida, da existência e desse viver a partir do absurdo. Ela caracteriza-se, pelo menos, por três palavras de base: contestação, repartição, intervalo. Aqui encontramos o tema de memorar, mas na sua modalidade inteiramente contestatória. Não estamos agora diante do enciclopédico acto de revisitar a história de uma nação, mas nesse movimento em que o poeta repetidamente se volta ao seu íntimo para tentar pensar-se feliz ou “…para possuir a própria consciência da felicidade sem a qual a felicidade não existe, e ao saber que, no momento em que pensa essa felicidade, ela deixa de ser a pura felicidade sentida para ser o inútil pensamento de uma felicidade perdida” (Prado Coelho, 1988, p.52). Por isso que o memorar é outro aqui, é de contestação do presente, é de esperança pelo paraíso perdido. É um memorar que se abre mediante a contestação da passagem dos momentos, é uma afirmação à estatização da vida e do mundo intrapsíquico. Então, a contestação aqui elevada ao grau supremo acaba por, querendo afirmar a eterna existência feliz, se descolar da própria existência. Daí aceitamos dizer não ao mundo por sermos muito nostálgicos e chamarmos pela memória como lugar de mundo-de-vida e lugar do verso, como é referido abaixo:

Brota na saudade

a vontade do regresso:

renascer na lágrima

que inunda o céu e o mar (p.94).

Guido pode dizer que a nostalgia enquanto fundamento da opressão da existência presente, seja pensanda e sentida, permite ver a vida como um absurdo, um sem nexo. No poema Xipfalo (p.20), a primeira estrofe é particularmente sugestiva quanto a este aspecto.

A casa ficou imensurável.

Nenhum infinito habita.

Tudo é imensurabilidade:

a voz, a memória e o tédio.

Isto é, a casa, o nosso habitat, ficou grande demais que até o próprio infinito não cabe mais, tudo está tão grande que as falas que nos acompanhavam dos que ora partiram, as recordações que deles restaram e um aborrecimento pelo vazio que se nos gerou, não se supera a si mesmo pela nostalgia que nasceu em seu lugar. Ou, por outras palavras, é como se uma queda dos intervalos que detêm o finito quebrasse, como se se medisse no cálculo geométrico das paredes da casa, essa subtil imensurabilidade que a voz, a memória e o tédio dão ânimo.

O segundo termo essencial é a repartição. O sujeito da nostalgia como que se fragmentasse numa multiplicidade irreconciliável de vivências, vês-as de um lado e ele de outro e nada resta senão o acentuar-se no eu-lírico a ideia de separação de si próprio, onde é nítida a assumpção de que:

Da distância tenho a ponte.

Incolor o lugar em que habito.

Lugar sem tempo e espaço (p.37).

No fim deste processo em que se perde o espaço e tempo com que se ergue o presente, lugar em que o corpo está, onde vive-se diante de uma realidade monotónica, nada mais há de restante do que o que ele próprio designa de “tombar em cinza na nervura da vida”, ou se preferirem, ser a metonímia definitivamente do nada existente e ser e não-ser a um só momento. Pois nós somos nossas memórias e é nelas que se dá sentido ao imaginário.

Sou apenas a sombra do que deveria ser.

E a sombra é um sujeito que é tudo e nada (p.66).

E também aqui a contestação sob o signo do nada/vazio progride na esteira da nostalgia: primeiro, a realidade física desfaz-se nas ruínas do que antes foi e firma-se irrefutável o binómio tudo-nada, depois assume-se a morte antes de se efectivar, em seguida, o cepticismo do que se é no final, o ser e não-ser ciente de si ergue-se, até chegarmos, não a uma certeza de se ser o que se é ou não se é, mas ao que se vê como imagem diante do espelho, isto é, nessa zona limite em que tudo se esboroa e no presente fica só o que se deveria ver; e tudo se apaga à luz do esquecimento que de si próprio pela distância que nos arrasta. Então o que fica do eu-lírico é muito pouco. É apenas, como se diz em A tua ausência (p.77), a imaterialidade dos momentos a tocar o silêncio da pele ou a pele em silêncio. E, por isso, a nostalgia torna-se insolúvel, infinitamente incongruente e imprópria àquilo que Guido expressa como o toque passageiro antecedido pela sensação de que: 

A tua ausência

não é solidão

é a indiferença

dum beijo sem boca

dum abraço sem braços

dum fogo sem lume

é a constante presença

duma brisa que só me toca

e passa

Por isso mesmo os dias se intervalam (eis o terceiro termo essencial desta análise). Porque a memória do sujeito com nostalgia é já uma memória intervalada. Tudo perde densidade na sua materialidade, mas essa densidade é acima de tudo a perda do valor do que é o dia-a-dia, uma perda de nós próprios para um presente que não nos pertence, isto é, uma progressiva quebra do vínculo das ramas do tempo numa existencialidade em que todas as raízes das nossas dores e alegrias do passado invocado se reduzem a um estar imerso numa noite inóspita. E aqui a situação experimentada pelo sujeito lírico impõe a dialéctica entre os verbos: nascer e morrer. O acto de nascer num mundo em que chegamos nus de certezas e de necessidades para uma possível nostalgia; e a imagem da morte que nos pesa quando vem à memória o que vivemos, cria em seu ninho a nostalgia e sentencia-se nos versos que se seguem: 

Todo amor nasce e morre dentro:

na mesma ciência fúnebre

Daude Amade

que constrói o mundo (p.25)

É este mundo interior que a cada memória obriga-nos a invocar a sua infacticidade, segreda-nos Guido que ele mesmo, esse mundo, adoece de paz, um olhar eufêmico do caos reinante. Vemos, assim, que as almas presas na nostalgia estão habitadas por um sumário de passados que inclui sonhos, saudades, dores, fomes, casa vazia, mortes, cansaço sobre os dias, amores mal-amados ou mal-acabados, infância, toda uma proliferação de imagens de uma vã existência amarga, onde a nostalgia teima em se plasmar presente em tudo que o poeta toca, sendo cúmplice de uma inominável percepção aquém do sujeito que sente. Daí que há delação em Ninguém vê (p.65):

Ninguém percebe a minha dor

Meu rosto de nostalgia e funeral

2. Tudo isto nos lembra algumas reflexões de um dos mais importantes filósofos alemães do século XX que melhor soube escrever sobre a nostalgia. Refiro-me a Martin Heidegger (1889-1976). Esta dor pelo que foi, abertura do rosto de nostalgia e funeral a que se refere Guido no poema da página 65 particularmente, mas que transcorre com densidade em todo espírito poético que se abre n’O silêncio da pele, evoca esse nível de estado de ânimo peculiar de disposição do ser-no-mundo designado nostalgia a que Heidegger aludia em sua prelecção de inverno de 1929-30: Grundbegriffe der Metaphysik (Os conceitos fundamentais da metafísica). É aí, exactamente a partir do § 2, que o filósofo alemão se refere às situações em que a nostalgia aparece e se exprime como um modo de sentir-se estando fora de casa. É o que é a nostalgia. Ela deixa-nos confrontados com o desejo ou “impulso para se estar por toda parte em casa”, citando o poeta romântico Novalis (Heidegger, 2011, p.7).

O que significa estar fora de casa ou em nostalgia? A resposta a essa colocação faz-nos recorrer à etimologia da palavra em cuja se depreende:

Nostalgia (from nostos – return home, and algia – longing) is a longing for a home that no longer exists or has never existed. Nostalgia is a sentiment of loss and displacement, but it is also a romance with one’s own fantasy. (…) A cinematic image of nostalgia is a double exposure, or a superimposition of two images–of home and abroad, past and present, dream and everyday life. The moment we try to force it into a single image, it breaks the frame or burns the surface (Boym, 2001, p.XIII).

Então aqui está a raiz dessa tonalidade de sentir. A fenomenologia da nostalgia na esteira da analítica existencial é conduzida dentro de uma impressionante lucidez. Para Heidegger, a nostalgia tem lugar aí onde o equilíbrio existencial se quebra, aí onde abre-se uma fractura e se origina uma forma de sentir ou experimentar o mundo que nos arrebata da quotidianidade, da mundanidade e da familiaridade que temos com as coisas e, nisso, “…de algum modo somos ao mesmo tempo puxados para trás por alguma coisa, repousamos sob um peso que nos empurra para baixo” (Heidegger, 2011, p.8). O peso que nos empurra e que aqui é referido é o passado, ele que nos prende deixando-nos nus do presente e à mercê da dor pelo deslocamento (são precisamente as ideias expressas por Guido) que é o regresso, esse estar-para-baixo: “…o instante em que o ser-aí singularizado arreda pé do “seu” hoje para ser o seu próprio tempo; para ser, a um só tempo, o seu futuro e o seu “passado” essenciais, os quais, só, só ele é” (Sena, 2019, p.32).

Otildo Guido pôde dizer em sua poesia a raiz dessa tonalidade afectiva? A resposta é afirmativa. Para ele o desejo de sentir-se em casa estando em todas as partes, alude na estrofe inicial do texto Regressos (p.94):

Brota na saudade

a vontade do regresso:

renascer na lágrima

que inunda o céu e o mar.

Dizendo de outro modo, a nostalgia tem raiz própria, ela é o em si que se origina quando o ser é interprelado por si mesmo na extensão de si enquanto ser finito e temporal sobre o infinito, esse céu e o mar descritos por Guido como incomensuráveis. Para tanto, afirmamos que na nostalgia advém uma ausência que se faz presente como tal, isto é, ausente. É uma tristeza subtil que não nos afasta da fealdade ou maldade, senão do reconhecimento de algo alegre que já não está. Heidegger fala de uma percepção do tempo que se estendendo na circunstância presente desgotosa no momento em que se tem saudade da casa, faz-nos invocar a vã ideia de uma coisa já passada ou de um porvir alegre, mas que por fim é ilusório (Heidegger, 2011, p.106).

Na nostalgia temos um movimento de retirada do ser sem mediação alguma, sem uma prévia reflexão, explicação ou argumentação. O presente, nessa circunstância, não deixa de existir, mas põe-se sobre ele o passado ou o devaneio de um futuro jubiloso, tal como uma fotografia posta na parede, ela apenas é. O próprio da nostalgia é o desejo que é justamente erigido no não ter aquilo que se deseja. De tal forma, se a poesia de Guido é nostálgica, uma declaração do querer estar em casa em todas as partes, é porque o poeta não está nela. O poeta não estando em casa, é justa a nostalgia como afinação do seu serque segera e escreve diante d’O silêncio da pele como cartas de um desejo de retorno. E a tonalidade afectiva poética expressa pelo eu-lírico tem como base este vínculo existente entre o tempo, a ausência e as coisas como opalco desta peculiar tonalidade afectiva fundamental, que é conectada à disposição (estar-para), ao afecto, ao páthos, à disposição de humor nostálgico, que é, na filosofia heideggeriana, traduzido pelo termo alemão Grundstimmung.

Na poética d’O silêncio da pele o poema é a moradia da dor originada pela ausência, perda ou partida, a mesma que o poeta reconhece ser mais dolorosa que a perda de nós mesmos, isto é, da vida:

E a dor da perda, da partida!

A dor de perder é maior

Otildo Justino

do que a de não ter vida (p.23).

Sendo o poema a moradia da dor, essa declaração de aceitação e exaltação dela como o que há de mais humano em nós, Guido concorda com o poeta do romantismo alemão Novalis (1772-1801), portanto, quando este afirma que “Cada uno debería sentirse orgulloso de su dolor. Todo dolor viene a recordar nuestro alto rango” (Novalis, 1942, p.50).

Estar disposto à dor como elemento característico do ser-no-mundo é estar a caminhar na direcção contrária a todo aquietamento e segurança, é aceitar que a existência é esse redemoinho ao qual o ser humano está decidido para só assim conceber a existência, portanto sem fantasias. Porém quando o passado oprime e comprime até si a tranquilidade vivificante, gerando no presente a dor de estar distante de casa, aí confronta-nos a nossa inquietude originária de tal forma que nos coloca fora de equilíbrio. A procura desse equilíbrio ou a porta através da qual se pode regressar à casa é a poesia. O poeta conduz-nos pelo caminho que se faz até ao habitat da seguinte maneira:

Do amor entre as Pedras

surgiu o fogo

que lapidou a palavra

até ser poesia (p.86).

Ou seja, a partir da circunstância-génesis em que nos reconhecemos como seres-no-mundo, condição de saber-nos estarmos jogados no abdurdo (na sua condição de Pedra) que na sua impenetrabilidade fez surgir o logos (fogo), que dele se fez a palavra para explicar a mundanidade e familiaridade com as coisas, daí, assim, fez-se a poesia (heurística).

Ao fim, o poema é essa casa em que Guido quer retornar porque é inóspita a condição de estar fora dela. O poema é o locus no qual se estanca do âmago essa tonalidade afectiva de humor, a nostalgia. Voltar ao poema é recolher-se diante do inverno cálido do presente ao tempo de ímpeto participial onde já a vida não imprime segurança, mas é possível estar por conta da familiaridade com as coisas lá existentes. Ou, dizendo nas palavras do poeta, o acto de voltar ao poema é a inteleção afectiva de que:

O poema é a casa desabitada:

a porta ruída, a mesa vazia,

a cadeira velha, a argilha seca,

o silêncio taciturno e umbroso (p.27).

ainda assim, voltar nela e habitá-la, refazer a porta ruída, preencher o vazio que se gerou diante da mesa e da cadeira, animar a argila seca, essa metonímia do nosso corpo na linguagem bíblica, e desfazer os nós desse silêncio que nos mordaça e reproduz em si as sombras do passado, é ainda melhor que estar no presente, essa extensão desgostosa do estar fora de casa.

O silêncio da pele compromete-se com a retirada do ser de um presente sem presença, onde o eu-lírico fica alheio de si, avoado. Visto isto a partir da fenomenologia heideggeriana, a nostalgia torna-se a tonalidade afectiva fundamental do aterro. Ao “sentimento” de mundo da nostalgia vincula-se inequívoca “(…) uma relação com o tempo, um modo como nos colocamos diante do tempo, um sentimento de tempo (Zeitgefühl)”  (Heidegger, 2011, p.120). Nisso, afrontado pela fugaz “poderosa alegria” do acolhimento ontológico-existencial, o sujeito soará no tom do , do outrora, de forma que ele se encontrará disposto em meio as coisas na totalidade como houvesse para ele retornado. Parece aí evidente a “volta ao passado”. No entanto, é bem outra a evidência que acompanha aquela evidência da poderosa alegria de sentir-se acolhido: o ser nostalgiado sente-se sido. E nosso poeta sabe que o Tempo, esse Rio que sustenta a contingência das coisas, corta em fatias sobrepostas o presente e o passado e nesse instante em que tombamos nessa tonalidade de desterro:

A noite divide a casa ao meio

como se fosse uma fronteira

separando duas partes do céu

Tudo se torna vago e tácito (p.42).

Deste modo, a imagem tangível do presente vive obliterada na memória e até nos actos. E, então, o passado, como uma memória afectiva, imagem psíquica, faz-nos aderir misteriosamente a um sentimento de segurança (ainda que outrora não tenha sido assim). Mas torna-se um afecto mnemónico tão profundo, tão fundamental, que só ele é capaz de tirar do profundo rememorar o “passado” que não revemos imageticamente nem desempenha alguma função corporalmente, mas sendo esse “passado” que sentimos e coloniza o presente. É assim como decorre a experimentação da nostalgia ao longo do livro de Guido que tentamos aqui entrecortar para fazer o todo de uma tonalidade afectiva fundamental que se cruza com a tonalidade afectiva poética presente n’O silêncio da pele,eque vai desvelando, entre a incruzilhada dos versos, a possibilidade de um habitar aterrado como um si-mesmo, um eu que se quer genuíno mas acolhido na ingénua intimidade intransitória com todas as coisas passadas, conforme exprime o desejo de estar em todas as partes em casa. E, por fim, habitar num mundo-de-vida de paz, quer dizer, permanecer pacificado na liberdade, salvaguardar cada coisa em sua essência, “como vontade e representação do sujeito”, como nos sugeriria Schopenhauer.

Referências

Abbagnano, Nicola. (2007). Dicionário de filosofia. 1ª ed. Trad. Ivoni Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes.

Boym, Svetlana. (2001). The future of nostalgia. New York: Basic Books.

Guido, Otildo J. (2020). O silêncio da pele. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto.

Heidegger, Martin. (2011). Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão. Trad. Marco António Casanova. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Novalis. (1942). Fragmentos. Trad. de Ángela Selke e Antonio Sánchez Barbudo. México: Nueva Cultura.

Prado Coelho, Eduardo. (1988). A noite do mundo. Madeira: Imprensa Nacional – Casa da moeda.

Sena, Sandro. (2019). “Nostalgia como Grundbefindlichkeit. Para um estudo heideggeriano sobre a existencialidade da velhice”. Studia Heideggeriana, Vol. VIII, p.25-49.


[1] É professor de Filosofia e História. É graduado pela Universidade Pedagógica (2018) em Ensino de Filosofia e História. Actualmente é estudante de Licenciatura em Literatura Moçambicana na Universidade Eduardo Mondlane. Tem interesse em crítica literária. É articulista sobre o vínculo entre o RAP como Arte e como Filosofia. Contacto: «[email protected]»

[2] Otildo Justino Guido é jovem poeta moçambicano nascido na província de Inhambane. É formado em contabilidade e Finanças e é membro da Associação Cultural Xitende. É compositor, poeta e escritor. Já participou em projectos nacionais e internacionais ligados à poesia. É vencedor da 2ª edição, na área de poesia, com a obra cuja nos propusemos a analisar, O silêncio da pele.

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