Talvez um outro abismo se imponha depois do abismo

O mundo voltou a parar de sorrir, voltou-se à reclusão, como aquela que dominou todo o 2020, como se o Homem fosse o mal dele próprio e que tentasse se esquivar de si. E a realidade parece obrigar, há vidas deixando de existir, há mortes e lágrimas por todo o lado, o caos está instalado, o medo reina  na vida dos seres humanos e nada mais se pode fazer que se esconder por detrás de uma porta, purificar a alma, talvez com álcool em gel, num mundo que se obriga a viver mascarado. Ou talvez se pode, ainda, fazer muito pela humanidade. O livro “O Abismo aos Pés” (Revista Literatas) e que chega em princípios de Fevereiro, vem mesmo para provar que enquanto existir vitalidade, o ser humano continuará a resistir. Com os seus 200 exemplares contendo 232 páginas, cada, o livro é resultado de uma série de entrevistas feitas a 25 escritores lusófonos e que respondem sobre a iminência do fim do mundo, sobre a beleza, sobre o papel das artes e sobre o que vai ser a vida depois do abismo.

E porque organizado pelos jornalistas culturais, Eduardo Quive e Elton Pila, colocamos eles próprios a responderem a outra série de questões, despidos das masmoras do jornalismo e da irritante vontade de invadir o interior, as almas das pessoas e revelar as suas sensibilidades. Enquanto o mundo desmorona, ou tenta pelo menos sobreviver, conversamos sobre esse “Abismo aos Pés” e o que fica, como bem atesta Elton Pila, é que “se a humanidade continuar como a conhecemos, demasiado umbiguista, talvez um outro abismo se imponha depois do abismo; a tempestade depois da tempestade, a bonança não existe”.

Depois disto, talvez sobrarão mais abismos por vencer. Haja fôlego…

Este livro chega numa altura em que vivemos um verdadeiro caos, como se esse período fosse único, extraordinário. Os números de mortes pela Covid tendem a subir em Moçambique. É o fim do mundo? Há alguma surpresa nisto?

Eduardo Quive: Ficamos sempre ali na iminência, uma espécie de limbo, para os que crêem num fim do mundo. Afinal o fim do mundo, e aí devo concordar com a maioria dos escritores por nós entrevistados, é uma questão de perspectiva. Isto que vivemos tem sim cenários apocalípticos. As mortes vêm de toda a parte e de várias formas. A Covid-19 parece o mal-maior por ser um “inimigo invisível”, mas por aqui também já ouvimos falar desse “inimigo sem rosto” na guerra de Cabo Delgado, que é o terrorismo, todos não temos dúvidas, pois os relatos são de facto de terror. No que se refere a Covid-19, penso que só agora chegou-nos a real dimensão do problema, justamente quando o “primeiro mundo” já está na imunização colectiva através da bendita vacina e nós, os pobrezinhos, estamos ali nas margens da incerteza sem se quer saber qual é a utilidade da vacina, se é para curar ou imunizar, se é para os ricos ou para os pobres, se é para os santos ou pecadores, se é para o Norte ou Sul, mas já que chegou num Brasil dilacerado e há sinais claros de chegada no nosso vizinho bilionário, a África do “Sul”, quem sabe os nossos irmãos que estão lá a dar duro a “procura de melhores condições de vida” em coordenação com os mukheristas não nos trazem algumas dozes antes de morrermos de vez. É um pouco disto que me ocorre nos últimos dias quando penso no fim do mundo. É este abismo todo que já não é uma miragem… de resto, sempre me surpreendo, não devia, mas me surpreendo. E espero ainda me surpreender depois do fim, quem sabe “alguém vai saber esconder-se” como nos sugere Valter Hugo Mãe!

A estupidez está a tornar o mundo triste, diz-nos Japone. Coloco a mesma pergunta sobre o papel da arte. Ela pode salvar o mundo? Pedro Pereira diz que ela só fará sentido se chegar a todos. Isso é utopia nesta Pérola do Índico…

Elton Pila: Tenho estado a pensar muito sobre isto, sobre o papel da arte e gosto de colocar esta pergunta aos artistas e ouvir como eles reflectem. Noutro dia, dizia ao Quive que minha ambição enquanto jornalista cultural a cada livro que leio, cada espectáculo de Teatro, Filme, Exposição que vejo ou música que oiço é mostrar como dialogam com o mundo a volta (artístico e real), com as pessoas e os fenómenos (sociais e existenciais) contemporâneos, mas também com o passado e no que nos pode ensinar para o futuro. E fazer isto sem o didactismo castrante, uma frase que se repete. Tanto por isso que a arte pela arte faz a mim uma tremenda confusão. Uma vez confrontei ao escritor Luís Carlos Patraquim, que infelizmente não foi entrevistado para este livro, sobre este arco em que se move a Arte e ele disse: “a verdadeira grande Literatura implica-nos a todos em todas as dimensões que nos constituem como seres de linguagem, de problematização da nossa própria complexidade, individualmente considerada”. Onde está escrito Literatura pode ser lido Arte. Que a Arte salve o mundo acho que seja demasiado ambicioso. Mas pode ajudar-nos a compreendermo-nos como humanidade e alguns fenómenos que nos acontecem a volta e talvez isso não deixe o mundo ruir.

Em meio a tanta solidão, o fim pode não ser esse caos, esse abismo. Lena Bahule canta que todos os dias devemos celebrar o Bom Dia. O fim do mundo é uma oportunidade para celebrar esse novo amanhecer?

EQ: Sobre isso também curto a música do Ponto de Equilíbrio. E sobre um novo dia chegam a dizer que “não há terror para quem sabe amar”. E a Lena Bahule tem esta questão espiritual bastante forte na sua música. O que de resto está nas minhas vivências. Acredito na cura do ar puro, se é que um dia conheci isso, nas águas do mar, dos rios, nos sons da natureza, os pássaros, etc. Mas até aí é porque não conheço outra forma de buscar uma forma plena de vida, que me faça ser feliz, tranquilo, que posso ser o menos dos problemas deste planeta. E, então eu acredito que tem um mundo novo a cada um dos gestos da natureza, talvez temos de aprender a deixá-la fluir a nossa volta. Talvez o mundo acabe para alguém todos os dias, então se posso ver um novo dia, talvez tenho de celebrar, mas para isso é preciso algo ainda maior, que é deixarmos de ser indiferentes. A vida ainda não perdeu valor, como nos alerta o poeta M.P Bonde, apesar de os noticiários abrirem sempre com notícias de morte. Há quem disse que provavelmente assistiríamos o fim do mundo pela TV, tudo a ser transmitido em directo, lá vimos o Capitólio, a ser invadido por pessoas incapazes de conviver com os “sistemas” como eles são, ou pior ainda, já havíamos assistido pessoas a morrerem tentando viver, que ficarem a espera da morte ao pularem dezenas de andares abaixo no World Trade Center, em chamas em plena Nova York, essas pessoas viveram o fim do mundo, e nós assistimos em directo, e acordamos no dia seguinte…

Pedro Pereira diz que a vida é curta para se ler maus livros. Este “Abismo” por que deve ser lido? É um livro melancólico e, como bem escreveram na outra conversa, faz parte das entrevistas que ninguém vai ler, como já é hábito por aqui…Mas e se alguém for a ler?

Elton Pila: Partindo da premissa de Pedro Pereira Lopes, deve ser lido porque não é um mau livro. Quanto a outra parte da pergunta vejo-me tentado a fazer as vezes dos escritores que dizem que o livro deixa de ser deles logo que sai do prelo e passa a ser dos leitores. Uma forma diplomática de esconder a incapacidade do criador sobre a obra que cria. Talvez Deus, se existe de facto, deva estar assim a olhar para a humanidade, como se dissesse que depois de saídos do ventre os homens e mulheres passam a ser do mundo e não o devemos colocar responsabilidade às costas, o famoso livre arbítrio. Enfim, depois da leitura do livro talvez se saia renovado ou ainda mais desesperançado na humanidade. A nossa vontade era reflectir sobre a iminência do fim do mundo, pelo caos em que nos vimos imersos, pela incerteza que era a vida e continua a ser. Não temos a ilusão de que possamos salvar, com o livro, o mundo. Mas o livro cumpre este papel de guardar para a posterioridade o estado de alma destes tempos. Há entrevistas luminosas e entrevistas sombrias. Como fizemos notar no texto de abertura, algumas respostas são este abrir da cortina do quarto escuro que nos encontramos, outras encerram o feixe de luz que nos entrava pela fechadura.

O distanciamento trouxe-nos a ideia de solidão, de angústia, para revelar o quão a humanidade é frágil. Mas o vírus tirou a beleza ao mundo? Ou essa beleza sempre foi utopia?

EQ: O que é mais belo no mundo é o que é o seu horror. O Homem. E essa beleza não é utopia. A verdade é que deram-nos o mundo nas mãos, fazemos coisas incríveis, são belezas de emocionar e transformar a nossa experiência de vida, como o nascimento, os bebés, a música, a poesia, a pintura, os fogos de artifícios, mas conseguimos fazer também coisas horríveis, como a violência insana. Até o pangolim, justamente um animal que acreditamos que é sagrado e só nos trás boas notícias, comemos e ainda bem que o escritor brasileiro Sérgio Tavares, que nos alerta para essa catástrofe, não aconselha às próximas gerações. E quando Deus ou seja lá que força nos soltou neste lugar, apercebe-se que estamos a falhar na nossa missão de sermos generosos, aí a natureza vai nos oferecendo alguns espectáculos extraordinários, como o eclipse do sol, a estrela cadente, o arco-íris, a regeneração das árvores, etc. enquanto o vírus mata, enquanto perdemos gente útil para este mundo, outros se encontram noutras linhas de batalha pela vida, o que é por si belo, apesar de toda a dor e esmero. E isso não é utopia, ou pelo menos não merece ser.

Não é a primeira pandemia a fustigar o mundo. Certamente esta há-de passar. Que mundo imaginam depois deste Caos? Ou nunca mais sairemos do abismo?

EP: Acho que estamos há muito no abismo, desde que a humanidade é humanidade. E culpar Adão e Eva por terem comido a maça ou qualquer fruta proibida não só é demasiado simplista como parece a humanidade a inventar culpados para não se olhar ao espelho. Vivemos sucessivos caos, as cruzadas, guerras santas, escravatura, colonialismo, nazismo, capitalismo, terrorismo, fascismo (que voltou a estar na moda hoje) são todas correntes do caos que ainda nem começou a esticar os tentáculos. A pandemia do coronavírus só é o caos que é pelo desinvestimento em investigação e nos sistemas de saúde em nome de interesses privados, das leis de mercado, que agora não conseguem (des)regular um vírus, um vírus invisível coloca os donos do capital em sentido. Seria engraçado se não fosse trágico. Então se a humanidade continuar como a conhecemos, demasiado umbiguista, talvez um outro abismo se imponha depois do abismo; a tempestade depois da tempestade, a bonança não existe.

Noah Harari escreve que a humanidade está a viver os seus melhores momentos. A evolução científica atesta isso. Mas há quem não vê nada de belo. As formas de acabar com a vida foram sofisticadas. O individualismo se acentuou. Terá a humanidade perdido a sua razão de ser? Todos os dias as telinhas mágicas nos bombardeam com mensagens do caos, de dor. Vale a pena viver assim?

EQ: Essa pergunta colocamos aos escritores que entrevistamos em “O Abismo aos Pés”. E Ronaldo Cagiano respondendo, quase ferido de morte com a reflexão que esta pergunta nos obriga a fazer, disse entre outras coisas “o indivíduo é que se boicota a cada dia em sua avidez competitiva num mundo gerido pelos fetiches do deus mercado, gerando todos esses subprodutos da maldade que culminam em terríveis passivos para a Humanidade.” Uma afirmação complexa, que provavelmente não esgota a questão. Mas como ser claro na resposta a uma pergunta destas nos dias de hoje? Agora nós vivemos por instinto, somos sobreviventes, sempre fizemos tudo para viver. O africano é assim, sobrevive às mortes de quando em vez. Tenho relido muita poesia nestes dias, vai me perdoar ser redundante nisso.

O Homem é uma causa perdida. O mundo seria melhor sem nós. Ainda há tempo para fingir tal como o poeta?

EP: Os versos de Pessoa, apesar de parecerem simples, encerram uma complexidade tremenda. Tanto sugerem uma ode ao fingimento como sugerem uma ode a verdade. Perguntas se há tempo para fingir, é só pensar que a máscara, que sempre foi um acessório de embuste, de ilusão, passou a ser de uso obrigatório e passou a significar civismo. Enfim, fingimo-nos protegidos com máscaras em transportes apinhados de gente. O Governo finge que nos quer proteger com medidas que são questionáveis. Fecharam galerias, museus, bibliotecas. Alguém fez um estudo sobre quantas pessoas foram infectadas nesses locais?

Bruno Gaudêncio responde que o mais triste do fim da vida é o processo. O actor Flávio Migliaccio, antes de se suicidar, escreveu uma carta. Cito: “A humanidade não deu certo, cuidem das crianças”. Terá algum sentido viver neste contexto em que o processo é mais doloroso? Para além do vírus da Covid, temos outros vírus, a ignorância, a corrupção, a depressão, o capitalismo…

EQ: Patrícia Reis que ainda não morreu, mas desafiámos-a assumir-se morte e que devia deixar uma mensagem para alguma geração futura, se é que vai existir. E ela disse “éramos felizes e não sabíamos”. Uma mensagem que serve muito bem para os vivos de hoje, não acha? É certo que o nosso poeta M.P Bonde aconselha que “não se deve prometer rebuçados a uma sociedade amarga”, mas volto a Ronaldo Cagiano, poeta e escritor dos mais intensos que li no pouco Brasil literário e contemporâneo que me chega, que foi forçado a imigrar em busca de um lugarzinho feliz e sobretudo seguro neste planeta, sabe-se lá se encontraremos isso em algum lugar, mas é em Portugal que vive as notícias do seu triste Brasil, diz-nos esta frase que quase corta-me a respiração: Ainda há espaço e tempo para sonhar e alimentar um mínimo de utopia. Aí sim, volta à sua anterior pergunta se a beleza não é uma utopia, acho sim que acabar com a ignorância, a corrupção, a depressão, o capitalismo é uma utopia, sobretudo porque deixamos essa responsabilidade para uma minoria ignorante, corrupa, capitalista, infelizmente, só a maioria deste planeta, que realmente pode ser factor de mudança, é que é deprimida.

Já mesmo no fim, Mia diz algo como muitas coisas que nos ligam à discriminação, à não aceitação do outro, têm que ver com o medo. Essa pandemia pode acabar com o medo? Com a estigmatização? Sairemos renovados disto se a vida não acabar?

EP: A palavra de ordem hoje é isolamento. E esta ordem se torna ainda mais imperativa quando alguém é infectado pelo coronavírus, afinal deve ficar isolado de tudo e de todos. Alguém que morre por Covid-19, em Moçambique, só pode ser enterrado por 10 pessoas. Alguns países estão a fechar fronteiras a outros países que estão com índices elevados de infecção. Este vírus e todas as medidas que se criam a volta são por si só estigmatizadores. Há países que começaram a vacinar em Dezembro, outros em Janeiro. Para nós, a vacinação (a colocarmos fé nas palavras do ministro da Saúde que é também político e já sabemos do valor das palavras dos políticos) chega apenas em Junho. Os pobres continuam a ser os últimos, como se as suas vidas valessem menos. Gostava muito que saíssemos renovados, mas tenho sérias dúvidas que consigamos.

O tenor melancólico de Salvador Sobral nos diz: aproveita para ser feliz. Pedro Pereira Lopes fala da celebração do fim de dias inglórios quando o fim chegar. Com esta pandemia, ainda faz sentido falar da felicidade?

EQ: Curiosamente, há dias li uma entrevista a João Tordo, sobre o seu recente romance que leva um título curioso: “Felicidade”. Já havia lido “Índice médio de felicidade” de David Machado, também ele português. E tu me sitas o Salvador Sobral… serão os portugueses felizes? Tenho de ler com alguma urgência esse novo romance do João, gosto muito dele. Já esteve cá na Matola pelas mãos do Camões. E devo entrevista-lo um dia. Isso deixa-me feliz e de repente me esqueci da pandemia…

Como é que a literatura vai se comportar depois da pandemia? Para o exercício criativo, terá algum proveito ficar em casa?

EP: Sou mais de diagnósticos do que de prognósticos. E um diagnóstico, e ainda nem estamos no período pós-pandemia, é que os e-books vieram para ficar. Isto é a um nível de formato. Acredito que, em alguma parte de Moçambique e do mundo, escritores há que já começaram a fazer destes tempos pandémicos matéria para um livro. E ficar em casa, nesse sentido, pode ser proveitoso. A Literatura é um processo solitário. Sobretudo o processo de produção, a escrita propriamente dita. “Longe do estéril turbilhão da rua/ beneditino escreve” são os primeiros versos do poema “A um poeta” de Olavo Bilac, um poema sobre toda a solidão fecundadora para as Artes. Mas a Literatura não se pode fazer de barriga vazia. E num país em que o artista é muitas vezes alimentado pela outra versão de si, como disse Eduardo White, ficar em casa pode significar um suicídio.

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