O escritor premiado

Por: Pedro Pereira Lopes

O escritor tem os pulmões definhados, fuma cigarros mentolados, desde que lhe morreu o pai, retalhado por uma carroça de bois, no campo, em circunstâncias que a polícia de investigação criminal jamais deslindará. Prefere viver sozinho, do matrimónio que teve, guarda inúteis recordações, as mulheres não achavam prazer nos livros e ele escrevia, sempre depois de três duplos de um gim tosco, para garantir notáveis epifanias.

De todos os seus hábitos, um cobra realce, o escritor faz-se sempre acompanhar de um livro e de um cigarro toda a vez que vai sentar-se à retrete. Visto viver só, não costuma fechar a porta, basta-lhe depois acender um incenso de sândalo ou canela que a casa fica arejada.

Nesta manhã, porque foi, ontem, acusado de plágio, os seus intestinos estão mais circunspectos do que o habitual. Há trinta minutos que está sentado, com um livro fechado e uma beata sem vida entre os dedos magros. As nádegas não lhe doem ainda, mas já estão marcadas. Estranha o reflexo que está no espelho à sua frente

um deles treme.

Não é plágio, não senhor, grita a sua voz interior.

O telemóvel toca, logo a seguir. O homem livra-se do que tem nas mãos e corre. Sim, é ele, é ele quem fala. Torna a apoiar as nádegas na ardósia azul e fria, o seu reflexo sorri, com a cabeça a imitar as vagas do mar, para frente e para trás. O seu livro, o livro do plágio, está numa shortlist de um prémio lá na Cochinchina, onde aconteceu a edição. Antes que o interlocutor do outro lado finde o louvor, um raio nuclear de proveniência ignorada desce dos céus (ou sobe das profundezas da terra) e pune o escritor.

A morte instala-se logo. Afinal há merda.

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top