VOZES DO NOSSO TEMPO: UM TEXTO UM CAMINHO J. MUNGUAMBE & H. JOSHUA (Conclusão)

 Escrito por Dionísio BAHULE

        Quer seja a negação da metafísica – «pondo a coisa motora da metafísica abaixo», quer a crítica sem alma dos avanços da ciência juntam-se a um certo absurdo que vem do Dadaísmo e de um Estado Moçambicano hostil ao humano; é como se a H. Joshua pedisse uma resposta a Carl Sagan, Stephen Gould ou Vitaly Goldanski sobre a essência da ciência. As questões que atravessam «Os Ângulos da Casa» surgem como que para acordarmos para nossa casa; ao nosso lugar de permanência. É o que continuo pensando, ao traduzir  casa por interioridade. Quando os nativos de Inhambane se dirigiram, amavelmente, à Vasco Da Gama e aos seus acompanhantes dizendo: Bela Nyumbane – ou, os Índios – estavam a dizer: aqui está o que o somos; o nosso ser.

         O exercício da H. Joshua desce cada vez mais ao lugar do assombro; ao espaço manifestante do ser; ao céu procurado por Freud e que o Surrealismo subsequente re-trabalha e com ele ganha um estatuto de grandeza. Ao recorrer continuamente ao quarto, diz, na surdina, que a frequência do mundo actual – está assaltada. Figuras como – quarto desarrumado; gavetas postas ao tecto; janelas ao chão e roupa estendida no coração abrem-nos ao segredo do que somos – desorientados. «Vivemos no efémero, na obsolescência acelerada, no capricho subjectivo, como se os valores mais sagrados, perdidas as bases, pudessem entrar no grande mercado dos valores mobiliários e flutuar por seu turno.»[1]. Ora, se para Nietzsche a «Morte de Deus» significa a morte de Homem, qual será o significado para a H. Joshua? Se para Heidegger o niilismo é igual ao esquecimento do Ser que se transforma em valor de troca – «Os Ângulos da Casa» ao nos levarem à interioridade – estarão num exercício de volta para casa? Porém, acredito encontrar neste texto – o primeiro elemento que liga J. Munguambe a H. Joshua. O fascínio pelo tempo.

As escadas deslocam-se para onde o Sol dorme./Atravessam as idades vivas das coisas./Esquecem-se do meio./Matéria orgânica./Para cima e para baixo deslocam corpos do silêncio, apoiando-se/nas lâmpadas e nas grandes campainhas da loucura.

A imagem vai e volta. Solta a brancura da cura do outro lado./Inclinado um pouco, inclinado o dorso: fala comigo a/voz dos olhos do mundo.

O tempo liga os dois por meio das idades. Mas, Munguambe distancia-se de Joshua ao explorar o lado mais escuro; o abismo; o ilógico; o jogo das imagens; combina múltiplas variantes para construir um sentido. Chamo-o de Poeta do Ilógico. Faz incestos com palavras; brinca com o corpo, talvez a sua maior obsessão. Se em H. Joshua temos «casa» como ritual de criação, J. Munguambe oferece-nos o corpo como a sua catedral de imaginação. As vanguardas Europeias encontram vida no edifício poético de J. Munguambe, principalmente, o Dadaísmo e o Surrealismo. Do primeiro busca a atitude do irracional; do ilógico e do ilegal. Tudo à margem das convenções. Foi assim que aparecia o Dadaísmo para repudiar «o que consideram ser as causas do conflito [I. G. Mundial], nomeadamente o sistema e a sua dependência excessiva da razão, da lógica, das regras e dos regulamentos[2]». Com este movimento, J. Munguambe brinca à semelhança do que os Futuristas faziam na influência do Design Gráfico – com nomes como Mallarmé [Un coup de dês], Tommaso Marinetti, Fortunato Depero, que sintetiza a ideia de sobreposição de imagens.

No tempo é onde começa: a ideia que ele apresenta como parte que compõe o seu título – AS IDADES, ou simplesmente: IDADES. Certamente pode-se questionar: o que nos poderia dizer este lexema – idades. Ou, que elementos substanciais podem nos levar a afirmar que AS IDADES são parte de um pensamento que vasculha o existencial? Em resposta, poderia colocar de forma interrogativa algo mais ou menos como: que idades se podem fazer fora do tempo? Entendamos todo o tempo como horizonte que compõe transitivamente qualquer ser, enquanto um filamento subsistente. Quer seja este um ente do ser ou simplesmente um ente enquanto ente.

É aqui onde procuro imaginar Jaime Munguambe como alguém que nasce do existencialismo, estruma-se no metafísico, cresce no imagismo[3] que, tendo expoentes como Ezra Pound e Amy Lowell, advoga «uma apresentação clara e altamente visual», para, com maturidade, desaguar no surrealismo, onde colhe novamente a ideia de choque; do ilógico; do jogo de imagens e palavras. Aqui, ele trava conversas com André Breton; sente-se fascinado para o mundo onírico apresentado por Salvador Dali com a sua combinação de imagens e, no fim, define-se como poeta do ilógico. Ilógico – enquanto aquele que gosta de manter relações incestuosas com a palavra para apresentar um convite ao leitor como aquele que reconfigura novos sentidos ao panorama interpretativo. A ideia de inter-lugares apresentada por Homi Bhabha parece ganhar subsídios neste outro mundo iniciado pelo Teatro Pós-Dramático.

Um outro elemento interessante é o DO VENTO. Este, completa o título todo que apresenta o livro. Aliás, se H. Joshua joga abaixo a metafísica, J. Munguambe socorre-se dela para levar o seu voo. A tradição manda dizer que esta palavra surge para dar consolo ao âmbito angustiante da pergunta sobre o ser – ou seja: a última razão possível. O vento metamorfoseia-se como o inominável; a coisa transcendental; o possível momento da respiração; da questão que se coloca no centro de toda arte digna deste nome – a questão antropológica. Idades que se fazem no tempo – comportam a ideia do ser que se torna; e o vento, a maneira simbólica de transladar o ser, essa «criança ao colo da noite», como atesta o texto [Os Intervalos dos Nós].

O suor desce/sobre a tontura das águas/e um barco geme na noite./Os braços da sintaxe/dissecam nos segredos das luzes/a solidão é apenas uma criança/ao colo da noite.

Há uma rebuscada atribuição e valorização da metáfora como um recurso de «inovação semântica»; como o que Ricoeur procura dentro da linguagem poética em uma nova nomenclatura – a referência metafórica para «expressar esse poder do enunciado metafórico de redescrever uma realidade inacessível à descrição directa.» E este barco que geme na noite – a mulher que traduzida e desvelada dentro d’um elemento cuja navegação remete-nos ao acesso da interioridade humana. Mas pode ser também uma ideia talhada do Velho e o Mar de Ernest Hemigway. «Oitenta e quatro dias sem peixe nenhum. Oitenta e quatro dias de vazio; de derrotas; de frustração.». Numa leitura rápida, como será que o pescador nos parece? Neste breve poema em prosa, o velho faz-nos perceber o jogo épico que, nos remetendo para a vida como um jogo de acontecimentos faz ganhar a heroicidade como conjugação de argolas que caracterizam o fluxo épico.

Mas não será também o barco que geme na noite uma disfarçada maneira de contar os «estames altos; os gestos lentos; as carnes e as águas» no cerrado aperto de dois corpos dissecados no segredo das luzes? Não será o barco esse corpo de mulher que geme na fornicação? Este exercício de deslocação e substituição que a metáfora nos empresta, leva-me à Jaime Munguambe como caminho para chegar a Eduardo White. Imaginemos o seguinte texto de White, precisamente na última estrofe. Gosto da flor que és/assim exposta/por entre os dentes/e a húmida língua da volúpia. Há neles uma disfarçada grandeza de celebrar o âmbito feminino.

Flor exposta por entre os dentes; húmida língua da volúpia ou, o suor que desce sobre a tontura das águas… os braços da sintaxe… o que nos seria a linguagem senão os sentidos em devir?

Referências Bibliográficas

  1. BADIOU, Alain. Pequeno Manual de Inestética. Ed. Liberdade Ltda. São Paulo. 2002
  2. BLOOM, Harold. A Anatomia da Influência – Literatura como Modo de Vida. Ed. Objectiva. R. Janeiro. 2013
  3. CULLER, Jonathan, Teoria Literária – Uma Introdução. Ed. Beca Produções Culturais Ltda. S. Paulo. 1999
  4. DINDÉ, Jérôme. Para Onde Vão os Valores? Ed. Instituto Piaget. Lisboa. 2004
  5. HENRIQUES, António. Argumentação e Discurso Jurídico. 2ª. Ed. Atlas SA. São Paulo. 2013
  6. GOMPERTZ, Will. 150 Anos de Arte Moderna Num Piscar de Olhos. Ed. Bizâncio. Lisboa. 2014
  7.         RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível – Estética e Política. Ed. Editora 34. S. Paulo. 2018
  8. RICOEUR, Paul, Tempo e Narrativa 1 – A intriga e a narrativa histórica. Ed. Martins Fontes. S. Paulo. 2019:3
  9. RYNGAERT, Jean-Pierre. Ler o Teatro Contemporâneo. Ed. Martins Fontes. São Paulo. 1998
  10. VOLOCHÍNOV, Valentin Nikolaevich. A Construção da Enunciação e Outros Ensaios. Ed. Pedro e João. S. Paulo.2013

[1] DINDÉ, Jérôme. Para Onde Vão os Valores? Ed. Instituto Piaget. Lisboa. 2004

[2] GOMPERTZ, Will. 150 Anos de Arte Moderna Num Piscar de Olhos. Ed. Bizâncio. Lisboa. 2014

[3] É um movimento poético modernista, criado na Inglaterra em 1921, por Ezra Pound, poeta, músico e crítico norte-americano (1885-19720), tendo como destaque Thomas Stearns Eliot ou T. S. Eliot, poeta modernista, dramaturgo e crítico literário 91888-19650) e David Herbert Lawrence (1885-1930). Esta poesia é caracterizada por explorar novos ritmos sonoros e imagens – procurando traduzir detalhes com muita precisão. A liberdade é também característica deste modelo de fazer a poesia. Simples e clara, mas não coloquial era a poesia apresentada.

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