Estraguei o dia?

Na infância, fui protagonista de vários estragos, como qualquer outra criança curiosa e pouco esclarecida sobre as consequências dos seus actos. Guardo na pele as marcas dos desastres que causei, mas é no subconsciente que residem as memórias do episódio mais marcante dos meus primeiros anos de vida. 

Lembro-me que foi na tarde de um sábado. O sol andava a passos lentos no céu, a derramar calor sobre a vila da Manhiça, quando fomos recebidos pelos Nkulungwanes da dona Elisa, a mãe da minha mãe.

Eu estava visivelmente apreensivo. As férias traziam com elas a raríssima oportunidade de passar tardes em família na casa da avó, que usava as suas últimas forças para afastar as rugas do rosto e manter em constante o seu riso enferrujado pelo rapé e raízes de mulala.

Logo na entrada, fomos recebidos pelo fumo da lenha do fogão onde as brasas devoravam pedaços de carne suculenta. Em ocasiões como esta, era costume haver sacrifícios na numerosa vara que grunhia debaixo da sombra do cajueiro a escassos metros da casa.

Enquanto esperávamos pela ceia, o Maheu emprestava a sua doçura ao ambiente, ao mesmo tempo em que nós, os mais novos, estampávamos a marca da nudez dos nossos pés sobre as riscas de vassoura que ornamentavam o chão arenoso do quintal da casa da minha avó. Corríamos livremente dentro daquele punhado de terra não parcelado e com dimensões oficialmente desconhecidas. O local era, para mim, um verdadeiro jazigo de paz e harmonia. Uma autêntica Disneylândia sem brinquedos sofisticados, nem personagens fictícios. Ao pôr-do-sol, rodeávamos o corpo da dona Elisa, sentado numa esteira de palha, a expelir longas e intermináveis estórias da mocidade que o tempo levou.

O incidente

Cansados de dividir o espaço com as galinhas, que desfilavam livremente em todo o perímetro, ignorando a nossa presença, decidimos brincar às escondidas. O terreno era aberto e sem opções para me entrincheirar. Olhei para os lados, só via arbustos em meio ao capim verde e longo nas bordas do quintal. Desesperado, fechei os olhos, suspirei fundo, e quando me dei conta já estava por baixo de uma mesa coberta por uma pano branco, engomado pelo calor das tigelas de comida que sobre ele jaziam. Fiquei lá por quase uma hora, até que se aperceberam do meu sumiço e, logo, toda a família iniciou os trabalhos de busca nos prováveis esconderijos. Vasculharam em todos os cantos (da casa de banho à pocilga), mas nada de mim. Naquele instante, eu sentia o orgulho de ser o mais procurado do momento a me subir a mente e deixei escapar um riso subtil, ouvido à distância pela minha mãe, que desconfiava de tudo, sem descartar qualquer hipótese. Aproximou-se para ver o que se passava, reparou, sem sucesso, ao redor. Abaixou-se, afastou o pano, e os nossos olhares se cruzaram. O ambiente ficou tenso, o silêncio imperou, eu podia ver a raiva a entornar-se no seu rosto. Sem dizer uma palavra, pegou-me à força e tentou resgatar o meu corpo daquele esconderijo. Assustado, recusei, segurei num dos suportes da mesa e tudo o que nela havia tombou. Um facto que demostrou que, a semelhança da Disneylândia, a casa da minha avó não era isenta a acidentes.   

Havia muito tempo que eu esperava por aquele dia, que chegou depois de longos meses de escola, na altura eu ainda frequentava a pré. Hoje sou jovem, sangue quente a trafegar nas minhas veias e dezenas de fios de barba a baloiçar no meu queixo. Ainda guardo na pele às marcas da sova que levei naquela ocasião. Porém, o meu maior desejo, até hoje, é libertar-me, de uma vez por todas, das lembranças daquela tarde, que nem o tempo foi capaz de apagar.

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