Num dia qualquer

Cheira merda. O roncar do camião cisterna desperta-o no auge do sono. São 4 e poucos. Revira-se sobre as caixas de uma marca de lençóis, na Vladimir Lenine, próximo da esquina com a Ahmed Sekou Touré. Cobre uma manta velha, mal cheirosa. Asquerosa, na verdade. O braço, dependendo da posição, ora esquerdo ora direito, serve de almofada. Veste umas calças jeans pretas de sujidade. Nota-se que a camisa já foi xadrez e uma camisola com capuz, onde lê-se: hope, no peito magro.
O cheiro de merda mistura-se com o ar. Respira o cheiro de fezes. Rende-se, abre os olhos, vê, de imediato, botas pretas e as calças azuis até aos joelhos, de dois homens que flexionam. Ouve os seus grunhidos, no esforço de abrir outra tampa de fossa que parece pesar toneladas, quando, afinal, nunca mais foi aberta, desde 1974. Sobe o olhar, alcança o topo do camião azul com inscrições pretas. Tem os dois homens, recebendo ordens doutro, no raio da sua visão. Tapando o nariz, levanta-se, não vê quem dá às ordens. – Não podiam vir outra hora? – pergunta, indignado.
A uma distância de quatrocentos metros, os homens trocaram olhares, espantados com a petulância do mendigo indignado. Em uníssono, ambos atiraram um: Futseka! E voltaram a labuta, grunhem, seus rostos ensopados fazem caminho, entre as rugas do esforço, para o suor que lhes percorre.Mal criados! Reagiu o mendigo. Que raio de merdas são vocês? Eu estava aqui a bicar, numa wela e vocês chegam-me com essa barulheira toda.
Um dos homens do camião cisterna que engole merda, perguntou: “fumaste quantas bangues, seu “xissiwana?”

Admira-vos a minha lucidez? – devolve com desdém, a formar um riso sarcástico, entre os lábios. Recolhe os jornais e revistas a sua volta, seus pertences.
É maluco, murmuram. Ignoram-no. O camião já está a engolir a merda. Estão ao lado das bombas, distanciam-se alguns passos em direcção a Pandora. Acendem cigarros. Conversam, um em Xitswa, outro em Xichangana. O morador de rua, rendido recolhia os jornais, as revistas antigas que o entretém. Senta-se quando encontra um Kurika. Deleita-se mas o cheiro de merda é insuportável. Vocês cheiram mal, diz, atirando um cuspo denso e longo, acastanhado pelo rapé e tabaco de beatas que mastiga ao pé dos dois homens. Saiam daqui! Ordena.
Furibundos, atiram os cigarros e caminham na direcção de Mussanhane, esse é seu nome, Mussanhane. Cobre os olhos com os braços e dobra o corpo como uma criança com frio, sem cobertor, para proteger-se dos chutos. – Oh cabrões, esta porcaria estoirou e vocês a perder tempo com esse desgraçado. Foda-se – ouve-se do Boss. Escapa por um fio, um pingo de sorte desse cão, pensam ambos. Correm para as fezes não espalharem-se na avenida. Não é domingo. Ajustam o tubo que engasgara. As mães recebem profissões noturnas de vergonha, da boca do patrão, cliente assíduo da Rua de Bagamayo. O Mussanhane afasta-se. – Se não querem trabalhar que digam-me, há muitos Paitos por aí, ouviu, com um riso de maldade, vingança.
Dobra a esquina, em frente à pastelaria aproveita a luz para ler o Kurika. Os guardas não suportam a catinga, para além do cheiro de merda. Enchotam-no: “patrões vão zangar se te encontrarem aqui, vai-te embora”.
O cheiro da merda que transbordou no passeio, chegou ao quinto andar. Os moradores descem, indignados. O Boss tenta explicar que foi um acidente no decurso da limpeza das fossas do prédio, há muito entupidas. Espantava os clientes da loja de mobiliário na sobre-loja. O proprietário pagou pelo serviço.

Não falam com ninguém do condomínio, de madrugada provocam um barulho e espalham merda. Não podemos dormir em paz?

Não sabia que não sabiam, esclareceu o Boss.

É assim então, chegas a casa de alguém e, simplesmente, entras?
Não sabia… interrompem-no os outros moradores. Um “falou com quem?” imperou naquela desordem sonora, todos a falar ao mesmo tempo.
Vencido, sem resposta, o Boss encara o moço proprietário da pergunta, de 40 aparentemente. Silêncio.
No Goa, na Eduardo Mondlane, Mussanhane, outra vez viu luz, devem ser 5.10, Abril. Ao lado uma beata de mentol, apanha. Tem fósforo. Encaixa o cigarro. Desaparece daqui, grita um guarda. Vir nos dar doenças só, suca! – conclui sem espaço para negociação.
O Boss apaziguou os ânimos: “depressa com essa merda”, grita. Está a alguns metros, a fumar um cigarro. Os dois homens limpam o passeio. Mussanhane não encontra lugar para sentar-se e ler o seu Kurika.

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